segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O NOVO TESTAMENTO E O DINHEIRO


Me incomoda um pouco certa hipocrisia que vejo em muitos que se dizem cristãos. Eles costumam a condenar e dizer que os outros serão torturados eternamente no inferno por não "seguirem o que está na Bíblia". Os homossexuais, por exemplo, são abomináveis por cerca de um a três pequenos trechos no Novo Testamento. Estes “cristãos” gostam de bater no peito dizendo que praticam o que a Bíblia diz. Mas, tem uma coisa que recebe “mil vezes” mais criticas no Novo Testamento do que a homoafetividade. Sobre tal coisa, não vejo, praticamente, “cristão” algum incomodado. Essa coisa é o dinheiro. Mas porque será que a forma com que o dinheiro é lidado pelos próprios cristãos hoje, não incomoda, praticamente, a nenhum “cristão”?

Segundo o relato de Atos, a igreja primitiva era tão apegada ao mandamento de amar ao outro, que todos (repetindo: todos) eles vendiam tudo o que tinham e distribuíam a cada um segundo a sua necessidade. Isso é atestado em Atos 2:44-45. Mas este fato é tão importante para o autor de Atos, que ele o afirma de novo em Atos 4:32-35. Este é o modelo de igreja deixado pelo autor de Atos.

O Novo Testamento não tem uma visão muito positiva acerca do dinheiro. Por exemplo: Em Colossenses 3:5 e Efésios 5:5 é dito que avareza é (nada menos que) idolatria. Acho que todos os cristãos sabem muito bem qual é a visão da Bíblia sobre a idolatria. Pegue tudo o que a Bíblia fala sobre idolatria a aplique também aos avarentos. Mas um detalhe: O conceito de avareza não é o seu conceito de avareza. É o conceito de avareza do Novo Testamento, que foi escrito por pessoas que, se o livro de Atos retrata uma verdade histórica, tinham como padrão de igreja aquele que eu citei de Atos no parágrafo anterior. Será que eles considerariam você como avarento? Em 1 Coríntios 6:9-10, é dito que os avarentos não herdarão o reino de Deus. Vish!

Mas, continuando, para a gente entender melhor:

O texto de 1 Timóteo 6:6-11 se pronuncia contra os que querem se enriquecer (você é cristão e quer ficar rico?). O texto diz que “os que querem se enriquecer caem em tentação e cilada e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que mergulham os homens na ruína e na perdição.” E o texto ainda diz que o a raiz de todo o tipo de mal é o amor ao dinheiro e que o amor ao dinheiro afasta da fé e aflige com muitos tormentos. No final, é dito para o leitor, filho de Deus, fugir destas coisas.

O autor do texto de Tiago vê os ricos com péssimos olhos. Leia o texto de Tiago 1:9-11. Repare o paralelo entre o “irmão humilde” e o “rico”. Sim, o rico não é considerado um “irmão”. Além disso, é dito que o rico será humilhado e perecerá. Em Tiago 2:5-9 é dito que Deus escolheu os pobres e que os ricos são opressores. O texto de Tiago 4:13-5:6, dentre diversas repreensões, diz: “Agora, vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que estão para vos sobrevir.” Em seguida, diz que o “ouro” e a “prata” que dos ricos (por terem ficado guardados) estão enferrujados e a ferrugem testemunhará contra eles e devorará a sua carne, o texto também diz que eles entesouraram como que um fogo para os tempos do fim. Diz também, claramente, que “aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado”.

Em Lucas 16:9, Jesus chama o dinheiro de “riquezas da iniquidade”. Imagino o que os que estão lendo sabem o que a bíblia diz sobre a iniquidade e os iníquos... Em Apocalipse 18, a Grande Babilônia é descrita como um grande mercado, onde se vende e compra de tudo, inclusive “almas humanas”.

Lembre-se que o Filho do Homem foi vendido por 30 moedas de prata.

Mas, para encurtar o texto, vou me ater apenas à obra do autor de Lucas-Atos. Afinal, foi ele que deixou aquele modelo de igreja que eu tinha citado no começo. Vou citar alguns textos e resumir o que eles dizem:

Lucas 12:33-34: Jesus dá um mandamento aos seus discípulos (no versículo 22, é dito que ele estava falando, especificamente, aos discípulos). Ele diz para eles venderem o que possuem e darem esmolas. Você é discípulo? Você segue os mandamentos de Jesus? Segue este?

Lucas 3:10-11: Quando a multidão, ao ouvir a pregação de João Batista, pergunta o que fazer, ele responde que “quem tiver duas túnicas , reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer faça o mesmo”. Seguindo este raciocínio, citando uns exemplos meio toscos, digamos que você tenha duas TVs ou dois computadores ou dois carros, você repartiria com quem não tem?

Lucas 6:20-26: Esta versão do sermão da montanha, em relação à de Mateus, é bem provável que seja mais próxima daquilo que talvez tenha saído da boca de Jesus. Neste trecho, temos um elemento literário chamado de quiasmo. Neste caso, temos uma grupo de pessoas que são declaradas como “felizes” e outro grupo paralelo sobre o qual são declarados os “ais”. Neste texto, são ditas afirmações como as seguintes: “felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus.”. E é pobre, pobre mesmo. Pobre de dinheiro. Aqui o autor não espiritualiza como o de Mateus, que transforma em “pobres de espírito”. Aqui, é só “pobres”. Tanto que, mais adiante, em paralelo aos “pobres”, ele dirá “ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação!”. Ele prossegue com “felizes” os que tem fome (fome mesmo) em paralelo ao “ai” dos que estão “saciados”, etc. Ricos e pobres são colocados em paralelo onde os primeiros receberão as recompensas e os segundos terão um triste destino. 

Lucas 5:11; 5:27-28: O autor deixa o ensinamento que o “discípulo” antes de seguir a Jesus, deixa tudo o que possui. Em Lucas 14:28-33 é feita uma advertência que termina com o seguinte: “Portanto, qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo”. A mesma regra é dita ao rico que queria herdar a vida eterna, em Lucas 18:18-30, Jesus diz que uma coisa ainda faltava a ele, que era vender tudo o que possuía e distribuir aos pobres e que, depois disso, ele poderia segui-lo. Esse é o ensinamento para o leitor do evangelho de Lucas que queira ser discípulo de Jesus. Existe um “pequeno” requisito antes de segui-lo. 

Lucas 6:30-31: Mandamento de Jesus: “Dá a quem te pedir e não reclames de quem tomar o que é teu...”. Vish! Nem precisa de comentários. 

Lucas 11:40-41: Contra os fariseus: “Antes, dai o que tendes em esmola e tudo ficará puro para vós”. 

Lucas 14:12-14: Ao dares um jantar, não convides amigos, parentes, vizinhos ricos, etc. Pelo o contrário, convide os pobres. Assim, serás recompensado na ressurreição dos justos. 

Lucas 16:14-15: Os fariseus (os antagonistas dos evangelhos), são chamados de “amigos do dinheiro”. 

Lucas 16:19-31: Parábola do Lázaro (pobre) e do Homem Rico. É comum esse paralelo pobre/rico, onde o “pobre” é associado ao personagem bom. O “rico” é associado ao personagem ruim. 

Lucas – 18:24-27: Continuando a história do rico que teve contato com Jesus, é dito que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no “Reino dos céus”. É impossível. Mas o impossível é possível a Deus. Quem sabe, por um milagre de Deus, algum rico abra mão do que possui, como o rico do texto não fez? 

Lucas 19:8-10: Muitos conhecem a história de Zaqueu. Mas só conhecem a parte da árvore. Poucos conhecem o ápice da história. Zaqueu recebe Jesus em sua casa e diz: “Senhor, eis que dou metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo”. Ao ouvir isso, Jesus responde que a salvação havia entrado naquela casa. Na música gospel que ficou famosa sobre Zaqueu, nenhum verso fala sobre justamente o ápice do texto. 

Lucas 16:14-15: Aqui Jesus ensina que o dinheiro é um “deus”. E diz que é impossível servir a Deus e ao dinheiro. Pois, exclusivamente, se apegará a um ou ao outro. Repare no paralelo oposto entre Deus X dinheiro. 

Lucas 12:16-21: Aqui é contada a parábola do rico insensato, que só pensa em si. Por 12 vezes a primeira pessoa é atestada numa curta fala, através dos sujeitos das frases e de pronomes possessivos como “meu”, “minha”... Ele fala consigo mesmo. Não existe o outro na vida dele. Para ele, Deus diz: “Insensato, nesta mesma noite será pedida a tua alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão?”. 

Atos 9:36; 10:1-2; 10:4-31: Em Atos, é comum o texto apresentar as pessoas discípulas e tementes a Deus, como pessoas que davam esmolas. 

Bem, esse é um resumo, mas acho que dá para se entender qual é a visão do Novo Testamento sobre o dinheiro, sobre riqueza, sobre os ricos e sobre o que fazer com o dinheiro que se possui. Você se considera cristão? Você diz que segue o Novo Testamento? Você condena os outros que não seguem o que o Novo Testamento diz em poucos versículos? E você segue? O que você tem a dizer sobre todos estes textos?

domingo, 7 de junho de 2020

(PARTE 2) OS TEXTOS BÍBLICOS SÃO MAIS POLÍTICOS DO QUE VOCÊ PENSA



Introdução

Quem pensa que política e religião não se misturam está muito enganado. A própria Bíblia é um livro muito político. Pretendo demonstrar em um texto alguns exemplos de questões políticas que influenciaram na elaboração dos textos bíblicos. Porém, ao escrever o texto, mesmo com tentativas de encurtá-lo, ele acabou ficando grande. Então, achei melhor dividi-lo em duas partes.

Na PARTE 1, que você pode acessar CLICANDO AQUI, faço uma contextualização do que estava sendo vivido no momento tratado e abordo as questões acerca do debate político entre os sobreviventes do exílio babilônico em relação a como lidar com os povos que eles encontraram na terra para a qual retornaram. Temos duas ideias conflitantes refletidas nos textos (1) dos patriarcas e (2) do êxodo e da conquista da terra.

Na PARTE 2, que é constituída por essa postagem, abordo o debate entre um grupo que, após o retorno do exílio babilônico, era a favor da instituição da monarquia e outro grupo que era contra a instituição da monarquia. O segundo grupo vence (não há o que esconder). Em seguida, demonstro como foi a ascensão do poder sacerdotal como governantes políticos na Judeia. Conhecer sobre o domínio político sacerdotal foi um “divisor de águas” na minha compreensão dos textos bíblicos. Pude perceber a intenção política sacerdotal em muitos textos que antes eu não via nada de mais. E é esse o ponto onde eu, de fato, quero chegar. Entretanto, para chegar nessa parte, acho importante, por questões didáticas, passarmos pelo conteúdo da PARTE 1 a fim de que o leitor passe, antes, por uma contextualização do período e por, pelo menos, um exemplo do uso da política na composição dos textos bíblicos. Portanto, saiba que o conteúdo principal está na PARTE 2. Mas não deixe de ler, antes a PARTE 1, pois acredito que será importante para a compreensão da segunda.

 

Contextualização

Após a leitura da PARTE 1, veremos, adiante, um outro debate que foi realizado no período. Este debate está relacionado à estrutura político-administrativa de Judá/Israel.

Como afirma Liverani, a partir de 587 e pelo menos até 515, sob os reis babilônicos e sob os imperadores aquemênidas, de Ciro a Dario, a Judeia ficou sem uma autoridade política formal com os negócios locais geridos por juízes e anciãos. Um exemplo de caso análogo seria o de Tiro, que foi governada por juízes e, inclusive, temos documentada a lista deles.

O livro de Juízes não descreve fatos históricos. Embora alguns elementos podem sim ter se originado de tradições antigas com algum fundo histórico (por exemplo, a história de Abimeleque) não havia sequer como haver uma fonte escrita para os episódios, visto que as histórias querem ser situadas em um período sem estruturas estatais, que são necessárias para o desenvolvimento da escrita. Neste momento da época persa, alguns podem ter optado, com base nas lendas dos juízes, em se manter essa estrutura governamental. Esta opção seria interessante para o povo que não foi deportado. Porém, um debate mais marcante foi realizado entre seguir ou não o modelo monárquico.

Com a destruição babilônica, o regime monárquico teve o seu fim em Judá. Entretanto, havia o debate entre (1) voltar a uma estrutura real, mantendo um estatuto de reino (ainda que sem condições de se livrar da soberania persa), obviamente apoiado pelos considerados descendentes davídicos, ou (2) adotar o modelo de cidade-templo, calcada no modelo babilônico, cujo modelo era apoiado pelo clero e podia ser mais simpático aos senhores persas.

Os vencedores serão os apoiadores do modelo da cidade-templo. Este modelo seria tratado como um “reino”, não governado por homens, mas pelo próprio Yahweh, através de sua casa, o Templo. Podemos detectar ainda nos textos bíblicos as vozes desse debate.

 

Textos em Juízes

Os textos das histórias de apêndices ao livro de Juízes (Jz 17-21) são trabalhados, certamente, por um redator pró-monárquico. Este trecho do livro conta trágicas histórias que relatam violência física, violência sexual, furto, idolatria, impunidade, etc que visam demonstrar o caos em uma sociedade anárquica. A propaganda pró-monárquica é clara e o “refrão” é repetido várias vezes no decorrer dos textos, inclusive, nas últimas palavras do livro: “Nesse tempo não havia rei em Israel, e cada um fazia o que lhe parecia correto.” (Jz 17:6; 18:1; 19:1; 21:25).

Por outro lado, a voz antimonárquica, é demonstrada na história de Abimeleque (Jz 9) que foi inserida em meio às histórias dos juízes. A história também é trágica. Abimeleque é filho de Gideão e, com apoio dos senhores de Siquém, se torna rei. Com isso, com o dinheiro sujo do templo de Baal-Berit, contrata vadios e aventureiros e mata seus setenta irmãos eliminando a concorrência ao trono. Apenas um irmão, Joatão, escapa. Joatão levanta um interessante apólogo antimonárquico (Jz 9:7-15) e prediz a morte de Abimeleque e os senhores de Siquém. Por fim, o que Joatão prediz acontece e, de forma trágica, acaba a história e o pequeno período monárquico de Abimeleque.

 

Instituição da monarquia em Israel - Saul

Outro exemplo deste debate ocorre na história da instituição da monarquia em Israel através de Saul (1 Sm 8-12). Este texto tem vários problemas: Em uma das vertentes, Saul é ungido rei por Samuel (1 Sm 9-10:16). Em outra, Saul é designado rei por sorteio (1 Sm 9:17-27). Ainda parece haver uma terceira, onde Saul é proclamado rei pelo povo após libertar o povo de Galaad dos amonitas (1 Sm 11). A redação final parece tentar unir estes textos.

Alguns autores, como Martin Noth, discorrem sobre o texto, em sua atual forma, ser fruto de um texto mais antigo, pró-monarquico, e outro mais recente, antimonárquico.

A passagem de 1 Sm 9-10:16 pinta uma figura da origem da monarquia em Israel como vinda diretamente da espontânea e graciosa iniciativa de Yahweh, que tem visto a aflição de Israel e ouvido o seu pranto, então Saul é enviado a receber a unção profética como chefe (nãgid), rei designado, aquele que salvará o povo de Yahweh.

1 Sm 9:16b: “Unge-o como chefe do meu povo Israel e ele salvará meu povo da mão dos filisteus, porque vi meu povo, e o seu grito chegou até mim.”

A fórmula em que Yahweh vê o sofrimento, ouve o grito do povo e levanta, por sua própria iniciativa, um libertador para o povo é típica.

Ex 3:7-10: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois conheço suas angústias... Agora o grito dos israelitas chegou até mim, e também vejo a pressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas.”

Em meio a textos que ressaltam a vantagem de ter um rei, como a libertação dos povos inimigos, textos que ressaltam as qualidades de Saul, textos que tratam os seguidores de Saul como “valentes cujo coração Deus tocara” e os que o desprezaram como “vadios”, é inserida posteriormente uma nova versão: a história do pecado do povo ao pedir um rei. Embora haja interferências no meio do texto, essa intervenção redacional é mais marcante nos blocos inicial e final emoldurando a história (capítulo 8 e capítulo 12).

No capítulo 8, o povo de Israel, querendo ser como as outras nações (esquecendo que é um povo santo, separado dos demais) (v. 5), pede a Samuel que constitua um rei para reinar sobre Israel. O pedido é interpretado como algo negativo. O pedido desagrada a Samuel e é tratado como uma renúncia à Yahweh. Israel deveria ser um povo cujo rei fosse o próprio Yahweh e não um rei humano.

1 Sm 8:7: “Yahweh, porém, disse a Samuel: ‘Atende a tudo o que te diz o povo, porque não é a ti que eles rejeitam, mas é a mim que eles rejeitam, porque não querem mais que eu reine sobre eles.”

Cabe ressaltar que quando se diz que Israel deve ser governado por Yahweh, significa que Israel deve ser governado pelo templo e consequentemente pela elite religiosa que administra o templo. Ser governado por Yahweh é ser governado pelos líderes religiosos que elaboram a tradição religiosa e têm o poder de botar na boca de Yahweh o que bem entendem.

Em seguida o texto compara o pedido do povo à idolatria. Após o povo pedir um rei à Samuel, Yahweh diz o seguinte:

1 Sm 8:8-9: “Tudo o que têm feito comigo desde o dia em que os fiz subir da terra do Egito até agora – abandonaram-me e serviram outros deuses – assim fizeram contigo. Agora, escuta a voz deles. Mas, solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei que reinará sobre eles.”

O passado monárquico era real. Não havia como dizer que o povo nunca teve rei. Yahweh tinha que aceitar o pedido do povo. Porém, fazer uma releitura histórico/religiosa da instituição monárquica era algo simples para quem detinha o poder religioso. Em seguida, Samuel explica os inconvenientes da realeza de forma bem detalhada.

1 Sm 8:11-19a: “’Ele disse: ‘Este será o direito do rei que reinará sobre vós: ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; ele os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas e os vossos melhores olivais e os dará aos seus servos. Da vossa semente e das vossas vinhas, ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos, ele os tomará para seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos. Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas Yahweh não vos responderá, naquele dia!’

O povo, no entanto recusou-se a atender a palavra de Samuel e disse: ‘Não! Nós teremos um rei e seremos nós também como as outras nações.’”

No capítulo 12, a fins de comparação com a exploração que a realeza traz ao povo, Samuel deixa claro que nunca explorou o povo enquanto esteve à frente dele. É importante ressaltar que Samuel não é rei, mas é um representante de Yahweh semelhante aos líderes religiosos que certamente se apropriam da figura de personagens como este.

1 Sm 12:1-5: “Então disse Samuel a todo o Israel: ... ’De agora em diante, será o rei que marchará à vossa frente... Deponde contra mim, diante de Yahweh e do seu ungido: de quem tomei o boi e de quem tomei o jumento? A quem explorei e a quem oprimi? Da mão de quem recebi a compensação para que fechasse os olhos diante do seu caso? Eu vos restituirei.’ Eles, porém, disseram: ‘Tu não nos exploraste nem nos oprimiste e de ninguém tiraste coisa alguma’. Ele lhes disse: ‘Yahweh é testemunha contra vós, e o seu ungido é hoje testemunha de que nada achastes em meu poder’. E o povo disse: ‘Ele é testemunha’.

Em seguida, Samuel relembra o passado em que Yahweh libertou o povo do Egito e da opressão de povos vizinhos e diz: “Apesar de tudo... vós me dissestes: ‘Não! É preciso que um rei reine sobre nós.’ No entanto, Yahweh vosso Deus é o vosso rei.” (1 Sm 12:12)

Após isso, o texto deixa claro que o povo cometeu um pecado ao pedir um rei: “’Reconhecei claramente como foi grave o mal que cometestes contra Yahweh pedindo um rei para vós’. Então Samuel invocou a Yahweh e ele fez que viessem trovoadas e chovesse naquele mesmo dia, e todo o povo se encheu de medo de Yahweh e de Samuel. Todo o povo disse a Samuel: ‘Intercede por nós, teus servos, a Yahweh teu Deus, para que não morramos, pois a todos os nossos pecados acrescentamos a desgraça de pedir um rei para nós.’” (1 Sm 12:17b-19)

 

Messianismo

Em cerca de 520 AEC, retorna para a Judeia, o grupo de exilados liderados por Zorobabel e Josué. Zorobabel era neto do rei Jeoaquim, que foi deportado para a Babilônia na primeira deportação (antes da destruição da cidade sob Sedecias). Zorobabel era representante da casa davídica. Josué era sumo-sacerdote.

Durante o exílio, a “casa de Davi” tinha mantido um certo prestígio régio na comunidade dos exilados. Em 562, Evil-Marduque sucede Nabucodonosor no trono Babilônico. O novo rei festejou sua entronização com uma anistia de que se beneficiaram (ao que sabemos) seja o rei de Tiro, Merbalos, que foi mandado de volta para a sua cidade, seja em forma menos completa Jeoaquim, que se tornou uma espécie de “hóspede” que, inclusive, comia à mesa do rei (2 Rs 25:27-30; Jr 52:31-34). Reconhecido como “rei de Judá” pelos caldeus, Jeoaquim o era até mais, obviamente, pelos sobreviventes judeus na Babilônia, para os quais fazia o papel de chefe da comunidade por todos respeitados. Inclusive, seu filho Sasabassar, é chamado de “príncipe de Judá” em Esdras 1:8 e seu neto, Zorobabel, é chamado de “governador da Judeia em Ageu 1:14 e 2:21. Tanto Sasabassar quanto Zorobabel possuem papeis de importância nos episódios do retorno do exílio.

Os exilados ainda mantinham na “casa de Davi” uma esperança de retomada nacional (exemplo: Ezequiel 37:24-27). O ponto alto da monarquia em toda a história israelita é sobre os reinos de Davi e Salomão. Para situar, o império persa é dividido em satrápias, que eram subdivididas em províncias, e a província da Judeia se localizava na satrápia persa chamada Transeufratênia ou “Além-Eufrates”. Sucedendo Davi, o reino de Salomão atinge exatamente o limite da satrápia persa, que corresponde ao Eufrates ao norte e a chamada “torrente do Egito” ao sul. Esta mesma extensão de terra designa a terra prometida por Deus a Abraão. O fato dos redatores bíblicos colocarem a terra prometida e conquistada durante o período monárquico como sendo constituída pelos limites da satrápia persa não poderia deixar de ter intenções políticas.

Zorobabel, volta para a Judéia com uma missão especial: reconstruir o templo. Os templos no Antigo Oriente eram construídos por reis (assim como é atribuída a Salomão a construção do primeiro templo). É natural que sobre Zorobabel tenham sido depositadas esperanças de um glorioso retorno monárquico. Ageu, profeta contemporâneo a Zorobabel levanta profecias que revelam um messianismo sobre Zorobabel:

Ag 2:20-23: “A palavra de Yahweh foi dirigida, segunda vez, a Ageu, no vigésimo quarto dia do mês, nos seguintes termos: Fala assim a Zorobabel, governador de Judá: Eu abalarei o céu e a terra. Derrubarei o trono dos reinos e destruirei o poder dos reinos das nações. Derrubarei os carros e aqueles que os montam; os cavalos e seus cavaleiros cairão, cada qual pela espada de seu irmão. Naquele dia – oráculo de Yahweh dos Exércitos – eu tomarei Zorobabel, filho de Salatiel, meu servo – oráculo de Yahweh – e farei de ti um sinete. Porque foi a ti que escolhi, oráculo de Yahweh dos Exércitos.”


A ascensão da hegemonia sacerdotal

O que acontece a Zorobabel? Não se sabe. O personagem desaparece dos textos bíblicos. Talvez, devido ao crescimento do messianismo em torno de sua figura tenha sido chamado de volta pelos persas. Mas isso é apenas uma hipótese.

Com o desaparecimento de Zorobabel, o messianismo davídico perde força. O movimento passa a ver o messias como uma figura de um futuro utópico. Em alguns casos, surgem tendências de dimensionar as expectativas mais no plano pessoal-existencial do que no político-nacional. São indicativas as expressões do “Servo de Yahweh”, no Deutero-Isaías (Is 42:1-7; 49:1-9; 50:4-9), que acaba por se configurar na imagem do “justo sofredor” (52:13-53:12) mais do que na do messias. Surgem também algumas tendências onde se faz passar a função messiânica da pessoa do rei ao povo de Israel, ou a Jerusalém, polo de atração para o mundo inteiro (Is 60:3-5).

Mas um grupo distinto tende a ocupar a lacuna real, absorvendo as suas características: os sacerdotes. Enquanto em Ageu, a figura principal é Zorobabel. Na leitura posterior de Zacarias, a figura principal é o sumo-sacerdote Josué. Embora Zorobabel até receba o mérito de construtor do templo (Zc 4:6-10), uma crítica é feita: “Não pelo poder, não pela força, mas pelo meu espírito”.

Em Zc 3, o protagonista é o sumo-sacerdote Josué. Em Zc 6:9-13 é explícita a apropriação dos elementos monárquicos por parte dos sacerdotes. Veja o que se diz do sumo-sacerdote:

Zc 6:9-13: “A palavra de Yahweh me foi dirigida nestes termos: Faze uma coleta junto aos exilados... Tomarás a prata e o ouro e farás uma coroa e a colocarás na cabeça de Josué, filho de Josedec, o sumo-sacerdote. E lhe dirás: Eis um homem cujo o nome é Rebento [Rebento é uma designação real, davídica, veja em Jr 23:5, onde é utilizado o mesmo termo em hebraico צֶמַח (tsemach)]; de onde ele está, alguma coisa germinará e ele reconstruirá o templo de Yahweh. Ele reconstruirá o santuário de Yahweh; ele carregará insígnias reais. Sentará em seu trono e dominará. Haverá um sacerdote à sua direita. Entre os dois haverá perfeita paz.”

OBS: O texto entre colchetes foi adicionado por mim.

É plausível que, inicialmente, ao invés do nome de Josué, constava o nome de Zorobabel neste texto que, no caso, ainda teria sido escrito ainda sob a esperança de Zorobabel. Porém, essa alteração do nome apenas mostraria que o sumo-sacerdote ocupa claramente o lugar do rei nas leituras posteriores.

Com o passar do tempo o sacerdote vai se apropriando de características do rei. Se antes, o ungido era o rei, agora, o sacerdote passa a ser ungido e ninguém mais, além dele pode receber a unção, senão será penalizado (Ex 30:22-33). As vestes sacerdotais (Ex 28) vão se tornando apropriações das vestes que, antes, o rei utilizava (o manto, o éfod, a coroa...).

Se no período pré-exílico, quando ainda havia a monarquia, quem mandava no templo era o rei e os sacerdotes eram funcionários públicos submissos à realeza (Am 7:10-13), as releituras posteriores mostram uma situação diferente. Se no deuteronomista já é retratada uma imagem de um rei submisso à Lei (Dt 17:18-19), no cronista, o rei é um “operador cultual”, louvado porque edifica ou restaura o templo, porque faz reformas cultuais, porque assegura os recursos para a realização do culto. Diferentemente das demais sociedades do Antigo Oriente Próximo, em que as legislações se dão por iniciativa do rei (por exemplo: o Código de Hamurabi), e que provavelmente ocorreu no período monárquico com textos legislativos mais antigos, a Lei que se estabelece se apresenta como não sendo monárquica, inclusive precedente à própria instituição da monarquia.

Como diz Liverani: “O processo de tomada de poder por parte do sacerdócio deu-se pois, nos primeiríssimos anos do século IV, quando é provável (na incerteza cronológica de que já se falou) que tenha existido a missão em Jerusalém de um outro enviado imperial, o escriba e sacerdote Esdras. Sua missão foi provavelmente concebida pelos persas como de caráter legislativo, se cruzarmos a insistência do decreto de Artaxerxes (Es 7) sobre a ‘lei do Deus dos Céus’ – como um texto preciso (‘que tens nas tuas mãos’; é, portanto, um texto escrito) e feito pelo imperador – com o que sabemos ter acontecido no Egito pela ‘Crônica demótica’ segundo a qual Dario encarregou o sátrapa do Egito de reunir os sábios do lugar para que pusessem por escrito as leis do país e, depois, fizessem aplicar essas mesmas leis.

Encarregado provavelmente de compilar as leis do país, mas também de cuidar de sua aplicação com autorização imperial, Esdras acentuou notavelmente as implicações teológicas e políticas de seu mandato. Afirmando o fechamento total em relação ao ‘povo da terra’ e afirmando a autoridade suprema da Lei de Deus (ratificada pelo imperador, mas depois em operação local sem outros condicionamentos), Esdras deu início a uma nova fase da história hebraica. A cidade-templo, fechada em relação aos vizinhos e aberta aos correligionários da diáspora, é governada pelo sacerdócio como único legítimo intérprete da Lei. Com Esdras conclui-se a elaboração da Lei, fecha-se também a elaboração historiográfica, param de agir os profetas, e o sacerdócio de Jerusalém tem plenos poderes.”

Nas igrejas, nas EBD, costuma-se a ensinar sobre o silêncio profético, como se Deus parasse de falar por profetas naquele período. Na verdade, os profetas, que poderiam trazer uma crítica ao poder sacerdotal foram criminalizados. Veja:

Zacarias 13:1-6: “Naquele dia, haverá para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém uma fonte aberta, para lavrar o pecado e a mancha. E acontecerá naquele dia – Oráculo de Yahweh dos Exércitos -, que eu exterminarei da terra os nomes dos ídolos: eles não serão mais lembrados. Também os profetas e o espírito de impureza eu expulsarei da terra. Se alguém profetizar novamente, seu pai e sua mãe, que o geraram, dir-lhe-ão: ‘Tu não viverás, porque falaste mentiras em nome de Yahweh,’ e seu pai e sua mãe, que o geraram o transpassarão enquanto profetizar. E acontecerá, naquele dia, que os profetas terão vergonha de suas visões, quando profetizarem; e não vestirão o manto de pele para mentir. Cada um dirá: ‘Não sou profeta, sou homem que trabalha a terra, pois a terra é minha propriedade desde a minha juventude’. E se lhe disserem ‘Que são essas feridas em teu peito?’, ele responderá: ‘Aquelas que recebi na casa de meus amigos’.”

Se, antes, o profeta era o mensageiro de Yahweh, se sua boca era a boca de Yahweh (o profeta transmitia a informação de Yahweh para o povo e o sacerdote transmitia a resposta do povo para Yahweh), agora esse papel de mensageiro de Yahweh também é apropriado pelo sacerdote (Ml 2:7: “Porque os lábios do sacerdote guardam o conhecimento, e de sua boca procura-se o ensinamento: pois ele é o mensageiro de Yahweh dos Exércitos”).

Obviamente, isso não se deu sem debates. E aqui vai uma dica: sempre que ver a figura de Moisés fique com um pé atrás. Pois Moisés é arquétipo de sacerdote. Além disso, Moisés é o escritor da lei e também a representa. O texto de Nm 12 foi escrito sob a ótica desse debate. O mesmo vale para o texto de Dt 34, sobre a morte de Moisés. O texto informa que nunca mais surgiu profeta como Moisés. Moisés é maior do que todos os profetas. Nada que o profeta possa dizer, se equipara ao que Moisés diz, ou seja, à Lei. Porém, na verdade, a Lei é produzida pelo sacerdote. Em outras palavras, o texto de Dt 34 informa, para os judeus do período pós-exílico, que aquilo que o sacerdote diz é maior do que aquilo que o profeta diz. Repare que tanto em Nm 12, quanto em Dt 34, é utilizado o argumento de que Moisés, diferentemente dos profetas, conhece a Yahweh, face a face.

Em resumo, os profetas são perseguidos e mortos. Sobreviveram apenas os que fugiram para a periferia (João Batista, que profetiza no deserto, é exemplo disso).

Cabe ressaltar que o próprio Jesus morreu por qual motivo? Enquanto estava na Galileia, estava bem. Mas quando foi à Jerusalém, entrou no templo, e desafiou os sacerdotes, decretou a sua morte ali.

Por fim, os sacerdotes, conseguem tomar o poder.

Êxodo 19:5: “Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino sacerdotes, uma nação santa.”


Bônus: Sobre o Templo...

É importante ressaltar também a evolução que o conceito do templo ganha nesse período. Em todo o período anterior, o típico templo, na região do Levante, era bem simples. Basicamente, era um anexo do palácio real. Os sacerdotes eram uma das categorias de dependentes palatinos e do rei recebiam seu sustento. O templo sequer tinha possuía pátios, a participação popular, ficava fora do templo. Com o exílio, na Babilônia, os judeus tiveram contato com um modelo bem diferente de templo. Os templos da Babilônia e da Borsipa, de Nippur e de Uruk eram organizações bem complexas, dotadas de um poder econômico e político relevante. Os templos possuíam diversos anexos, escolas de artesãos, escolas de escribas e residências sacerdotais. Os templos possuíam também pátios para acesso dos fiéis. Sacerdotes e escribas do templo eram uma verdadeira classe dirigente que administrava a economia da cidade e do território, especialmente para as cidades (até importantes) que não eram a capital, e portanto, não tinham um palácio real. Além disso, o templo babilônico recebia diversas taxas (incluindo a “décima”), prebendas para serviços cultuais, aquisições votivas de pessoal, etc. Politicamente relevantes eram também as “isenções” ou “privilégios autonomistas” que os reis babilônicos conferiam às cidades dos templos e que, posteriormente, os persas adotaram, vendo nisso um bom modo de administrar grandes comunidades citadinas em um justo equilíbrio entre autonomia local e dependência imperial.

Ao voltar para Jerusalém para reconstruir o velho templo salomônico, o clero judaico tinha em mente esse modelo, que estava em função das relações com os imperadores, supria as fraquezas da monarquia davídica restante e assegurava aos próprios sacerdotes o modo de administrar a nova comunidade nacional até nas decisões políticas e sobretudo nas orientações legislativas e sociais.

Hoje, devido às construções tidas como extremamente sagradas, que se situam sobre o Monte do Templo, em Jerusalém, é impossível escavarmos o local onde, tradicionalmente, o templo havia sido construído. Porém, o modelo descrito nos textos bíblicos para o templo construído por Salomão possui vários elementos anacrônicos, como os pátios que já foram citados como provindos de um contato com os templos babilônicos. As dimensões também certamente não eram as mesmas. Cabe ressaltar que a lembrança que os judeus possuíam do templo anterior, eram referentes ao estado final do templo (antes da destruição dos Babilônios). Possivelmente, o templo que tinham em memória é mais por mérito de Josias do que do próprio Salomão. Mas preferiram imaginar que o templo ficara imutável por 4 séculos. É interessante que os mesmos tesouros do templo, normalmente creditados à Salomão, são roubados ou dados como tributo várias vezes como se sempre estivessem ali (1 Rs 14:25-26; 1 Rs 15:18; 2 Rs 12:19; 2 Rs 14:11-14; 2 Rs 16:8; 2 Rs 18:14-15; 2 Rs 24:13).

Cabe ressaltar que este anacronismo é aplicado não somente ao templo, mas também ao palácio de Salomão, que é descrito como um palácio em estilo persa, com data entre os séculos VI e V, semelhante à estrutura de Susa e Persépolis.


O palácio de Salomão e a apadana aquemênida.
(a) Palácio de Salomão (reconstrução hipotética com baso nos textos bíblicos de 1 Reis)
(b) Terraço de Persépole com a apadana de Dario
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Diferentemente dos babilônios e assírios, que impunham um forte regime de deportações e enfraquecimento cultural dos povos dominados, os persas apoiavam as práticas culturais e religiosas dos povos dominados, inclusive, se necessário, dando suporte financeiro para construções de templos. Obviamente, o método era estratégico, se tratava de investimento. Estes templos serviriam de local de recolhimento de impostos, que seriam repassados à corte persa. Além dos exemplos que constam na bíblia sobre o apoio persa aos cultos dos judeus, podem ser observados diversos casos semelhantes como na Estela Trilíngue de Letoon (com isenções de impostos ao local do templo concedidas por Artaxerxes III), na inscrição de Magnésia (com a confirmação de Dario dos cultos locais), nos Papiros de Elefantina (com a autorização imperial sobre a celebração da Páscoa no Egito), etc.

Neste contexto, o templo assume o seu papel. Além de contribuições locais, o templo pôde contar com contribuições de zonas externas da Judéia (Zc 6:10).  O templo assumiu (baseado no modelo babilônico), um papel de certo modo “bancário”, com concessão de empréstimos em condições privilegiadas – fator estabilizador na precária condição socioeconômica da população.

OBS: Sobre a estrutura administrativa, após o desaparecimento de Zorobabel e o fim do projeto monárquico, ainda houve govenadores locais (com o título “pehah”) sobre a Judeia por pelo menos um tempo. Depois do retorno de Neemias a Susa, parece que eles desaparecem. Os textos bíblicos dão a entender que o poder estava firme na mão da classe sacerdotal, pelo menos a partir da reforma de Esdras (estamos considerando Esdras no tempo de Artaxerxes II, sendo assim depois de Neemias e não segundo o relato bíblico, que coloca Esdras precedendo a Neemias para mostrar que a parte religiosa – estabelecimento da Lei - é mais importante que parte “secular” - construção de muros). A linha sucessiva dos grandes sacerdotes é possível ser reconstruída pelos dados bíblicos e por fontes como Flávio Josefo de forma concordante. Fora isso, a província estava dividida em nove distritos com um prefeito como chefe. Na capital, o autogoverno sobretudo judiciário estava assegurado por um “colégio de anciãos” (zeqenim) para a resolução de problemas correntes, mas as grandes escolhas legislativas eram de competências de uma “assembleia” (qahal) de que participavam todos os chefes de família (ro’sê há’abôt) da Judeia, e que era convocada com participação obrigatória (Esd 10:7-8). Porém, a centralidade do templo de Yahweh, absoluta e até enorme em proporção ao território, e os próprios critérios de auto-identificação etnoreligiosa dos judeus conferiram ao sacerdócio a guia efetiva da comunidade, guia que eles exerceram mediante a centralização de importante atividades econômicas e mediante o monopólio da interpretação da Lei, a qual lhes conferia a capacidade de regular todas as questões relevantes da comunidade.

 

Cronologia do período persa
(Clique na imagem para ampliar)

Conclusão

É importante saber se contextualizar. Hoje, muitos possuem a visão da Bíblia de um livro fechado, já estabelecido. Porém, naquele momento as condições eram outras completamente diferentes. Os livros eram isolados (inclusive havia muitos outras obras que sequer entraram na Bíblia), não tinham o status de canônicos e ainda estavam em fase de produção. Isso facilitava em muito o revisionismo histórico.

Ainda nos dias atuais, mesmo com a civilização tendo avançado tanto, mesmo com o advento da ciência moderna, mesmo com a ampla capacidade de acesso à informação, a história continua sendo relida para fins políticos. E não estamos falando de uma distância histórica de que chega a mais de 1 milênio como a que havia entre a comunidade pós exílica e o período retratado nas histórias dos patriarcas. Estamos falando de poucos anos como nas releituras políticas sobre os eventos da ditadura militar brasileira ou de pouco mais de um século como nas releituras políticas que são feitas ao tentar transformar o zumbi de palmares em um escravista. Agora, se isso ocorre em pleno século XXI, imagine como não ocorria nos séculos AEC, onde religião e monarquia andavam de mãos dadas, onde o analfabetismo era imenso, não havia o conceito de história moderna e a população apenas consumia o que os líderes religiosos transmitiam...

A teologia sacerdotal mudou a religião judaica a ponto de termos dois cenários religiosos completamente diferentes no período pré-exílico e no período pós-exílico. Obviamente isso também influenciou bastante a teologia cristã, que não deixa de ser filha da pena sacerdotal.


Referências

LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. Paulus Editora; Edições Loyola. 2014.

SKA, Jean Louis. Introdução à Leitura do Pentateuco. Edições Loyola. 2003.

BROWN, Raymond Edward; FITZMYER, Joseph Augustine; MURPHY, Roland Edmund (org.). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo. Paulus Editora, 2018.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Profetas, Sacerdotes e Sábios: curso livre. 2020. notas de aula.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. O corpo como andor ou o sopro sem pó: dos modelos de espiritualidade da Bíblia Hebraica. (Um ensaio [quase] somático) in: RODRIGUES, Nelson Lellis Ramos (org.). Espiritualidade para o Século XXI: subsídios teológicos para a espiritualidade de todo o cristão.

FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia Desenterrada: A Nova Visão Arqueológica do Antigo Israel e das Origens dos Seus Textos Sagrados. Vozes. 2018.

SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal EST. 1994.


(PARTE 1) OS TEXTOS BÍBLICOS SÃO MAIS POLÍTICOS DO QUE VOCÊ PENSA



Introdução

Quem pensa que política e religião não se misturam está muito enganado. A própria Bíblia é um livro muito político. Pretendo demonstrar em um texto alguns exemplos de questões políticas que influenciaram na elaboração dos textos bíblicos. Porém, ao escrever o texto, mesmo com tentativas de encurtá-lo, ele acabou ficando grande. Então, achei melhor dividi-lo em duas partes.

Na PARTE 1, que é constituída por essa postagem, faço uma contextualização do que estava sendo vivido no momento tratado e abordo as questões acerca do debate político entre os sobreviventes do exílio babilônico em relação a como lidar com os povos que eles encontraram na terra para a qual retornaram. Temos duas ideias conflitantes refletidas nos textos (1) dos patriarcas e (2) do êxodo e da conquista da terra.

Na PARTE 2, que você pode acessar CLICANDO AQUI, abordo o debate entre um grupo que, após o retorno do exílio babilônico, era a favor da instituição da monarquia e outro grupo que era contra a instituição da monarquia. O segundo grupo vence (não há o que esconder). Em seguida, demonstro como foi a ascensão do poder sacerdotal como governantes políticos na Judeia. Conhecer sobre o domínio político sacerdotal foi um “divisor de águas” na minha compreensão dos textos bíblicos. Pude perceber a intenção política sacerdotal em muitos textos que antes eu não via nada de mais. E é esse o ponto onde eu, de fato, quero chegar. Entretanto, para chegar nessa parte, acho importante, por questões didáticas, passarmos pelo conteúdo da PARTE 1 a fim de que o leitor passe, antes, por uma contextualização do período e por, pelo menos, um exemplo do uso da política na composição dos textos bíblicos. Portanto, saiba que o conteúdo principal está na PARTE 2. Mas não deixe de ler, antes a PARTE 1, pois acredito que será importante para a compreensão da segunda.

 

Contextualização

No início do século VI AEC, Judá foi invadida pelos babilônicos e Jerusalém foi destruída. A aristocracia, os sacerdotes, os altos funcionários públicos e a população urbana, de forma geral, foram deportados. A população rural, camponesa, que constituía a maior parte da população, foi mantida nas terras.

Em 539 AEC, a Babilônia foi tomada por Ciro e o império persa se impôs. Os livros de Crônicas e Esdras informam que, em 528 AEC, Ciro escreve um edito permitindo os judeus retornarem para as suas terras. Embora esse edito em si não tenha confiabilidade histórica, essa data marca o retorno dos judeus para a sua terra. Mas não houve apenas um único grupo de exilados que em uma data específica retornou para Judá. É bem provável que a partir de 539 AEC (ou talvez até já na época de Evil Marduque) já houve retorno de grupos de exilados e sem dúvida alguma houve novos grupos bem posteriores, principalmente após o apoio do império persa. Mas deve-se considerar que nem todos os judeus retornaram do exílio. Houve quem se estabeleceu por lá e decidiu ficar.

Como já comentado em outras postagens deste blog, o exílio foi um divisor de águas na teologia judaica. Para ver um post que dá uma passada no assunto, CLIQUE AQUI.

Outras questões que influenciaram muito a teologia judaica foram as demandas ocorridas no pós-exílio, desde o início, à partir o encontro dos sobreviventes (a elite religiosa que retorna) com os remanescentes (o povo que fica na terra) até séculos adiante. A Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento), como possuímos em mãos, é fruto do período pós-exílico. Obviamente, temos textos pré-exílicos, porém os redatores finais da Bíblia Hebraica, que vão editar a forma final dos textos, de forma generalizada, são pós-exílicos.

 

Uma história normal X Uma história inventada

O historiador Mario Liverani, em seu livro “Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel”, que será a base principal para este texto, descreve a história antiga de Israel desde o final do período do bronze até o período persa. Ele divide o livro em duas partes: “Uma História Normal” e “Uma História Inventada”. Na primeira parte, “Uma História Normal”, ele conta a história de Israel do início do bronze tardio até o exílio. Nesta parte são demonstradas as origens do povo de Israel e Judá, o período monárquico, suas relações com povos vizinhos e os impérios que ascenderam, as questões sociais e religiosas... tudo isso de forma cronológica. Nesta parte, Israel e Judá não são muito diferentes de outros povos quaisquer do Levante. Na segunda parte, “Uma História Inventada” ele conta a história desde o fim do exílio até o fim do período persa. É nesta parte que ele mostra como, em meio às demandas politicas, sociais e religiosas vai se desenvolvendo uma história inventada sobre o povo, diferente da história real, tratando as questões do momento pós-exílico através de mitos e lendas sobre um passado remoto.

 

Encontro dos sobreviventes com os remanescentes

Uma parte considerável dessa “história inventada” se dá pela pelo encontro dos sobreviventes do exílio com os remanescentes que ficaram na terra.

É importante relembrar que os sobreviventes eram a elite religiosa e social. Segundo a sua visão, eles compõem o povo escolhido por Yahweh. Em diversos textos, a atenção de Yahweh e as promessas de retorno são dedicadas exclusivamente aos exilados. Em Ezequiel, por exemplo, a glória de Yahweh deixa Jerusalém para acompanha-los no exílio. A história do povo é a história da elite, mesmo sendo a minoria.

Ao retornar do exílio, o choque cultural entre os diferentes grupos foi muito grande. Os remanescentes não passaram pela revolução teológica e não seguiam os preceitos religiosos estipulados durante o exílio.

Os livros de Esdras e Neemias descrevem os acontecimentos que ocorreram no período-pós exílico na Judeia. Mesmo escritos bem depois da época dos primeiros grupos que retornaram e tendo alguns problemas de cronologia, estes livros informam sobre diversos problemas que ocorreram entre o povo que retornou do exílio e o povo que havia ficado na região de Canaã, sejam israelitas/judaítas ou não. Havia conflitos ligados à construção do templo, à construção das muralhas, problemas relacionados aos matrimônios que envolviam pessoas dos dois grupos, dentre outros. Um dos problemas mais relevantes foi a questão da terra, que estava ocupada com o povo que ficou. Como lidar com isso?

 

A questão da relação com os povos que se encontravam em Canaã

“O conflito de estratégias políticas e de interesses materiais entre núcleos de sobreviventes e comunidades locais gerou ‘cartas de fundação’ míticas sobre os títulos de propriedades da ‘terra’ entendida em conjunto. Como no plano pessoal era importante poder aduzir títulos de propriedade ou pelo menos genealogias familiares detalhadamente para cada clã e vila, assim toda a operação do retorno dos sobreviventes devia-se basear na capacidade deles de se referir a respeitáveis tradições que atribuíssem à terra de Canaã às tribos de Israel e que identificassem como legítimos herdeiros das tribos os núcleos dos sobreviventes e não as comunidades dos remanescentes. É, aliás, significativo o desvio do uso de ‘nahalah’, ‘propriedade hereditária’, típica dos textos de redação deuteronomista, para ‘ahuzzah’, ‘posse (fundiária)’, típica de textos de redação sacerdotal – desvio que parece marcar a passagem de uma reivindicação legal para uma tomada de posse.”

(LIVERANI, Mário. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel)

 

Entre os sobreviventes, podemos identificar duas linhas de pensamento divergentes. Ambas vão focar em “mitos de fundação” diferentes e deixar sua teologia registrada em oposição à outra. Temos o grupo mais maneável (vou chama-lo nesse texto de “Grupo Maneável”), que vai defender uma certa aceitação dos remanescentes que respondessem a uns requisitos mínimos de natureza étnica e religiosa. Por outro lado, temos o grupo mais radical (vou chama-lo nesse texto de “Grupo Radical”) que vai defender uma forte separação dos remanescentes, sobretudo os de origem não judaíta. É provável que as ideias do primeiro grupo, tenham prevalecido no início, enquanto ainda era viva a opção monárquica (trataremos sobre isso na PARTE 2). Mas, por fim, a segunda posição se tornará a vencedora.

Os mitos de fundação tratados por cada grupo abordarão a chegada do povo na terra de Canaã. O Grupo Maneável trabalhará mais sobre o mito de fundação dos patriarcas (chegada pacífica em relação aos povos que habitam Canaã), enquanto o Grupo Radical trabalhará mais sobre o mito de fundação da conquista da terra (chegada violenta em relação aos povos que habitam Canaã).

 

A teologia/política do grupo mais maneável - Patriarcas

É fato que o estudo diacrônico dos textos dos patriarcas revela que, de início, os patriarcas não eram relacionados entre si. Em outras palavras, originalmente, Abraão não era pai de Isaque, que, por sua vez, não era pai de Jacó que também não era pai de José. Foram tradições independentes e provindas de regiões diferentes (por exemplo, Jacó, originalmente, vem do reino do norte, Israel, antes de ser destruído) que foram evoluindo e, posteriormente, foram unidas. Nesse processo de evolução, algumas versões de tradições duplicadas acabaram ficando no texto.

Exemplos:

Temos três textos distintos onde um patriarca engana um governante estrangeiro dizendo que sua mulher é sua irmã e o governante sofre ou corre um risco de sofrer um mal enviado por Yahweh/Elohim. (veja as semelhanças entre Gn 12:10-20 = Gn 20 = Gn 26:1-14 – nos dois últimos textos, se trata do mesmo governante).

Temos dois episódios em que, por conta de Sara e por conivência de Abraão, Agar é expulsa/foge para o deserto e o Anjo de Deus fala com ela em um poço sobre o futuro de seu filho (Gn 16:1-14 e Gn 21:8-20).

Temos duas tradições da venda de José em que em uma ele é vendido aos ismaelitas (Gn 37:25, 27, 28b) e na outra é vendido aos midianitas (Gn 37:28a, 36).

Estes são apenas alguns exemplos dentre vários.

Como alegam Israel Finkelstein e Neil Silberman, as histórias de Abraão parecem estar mais centradas na cidade arameia de Harã. Harã (ou Haran), segundo o texto de Gênesis, é a cidade de onde Abrão se separa da família dos seus pais e parte rumo à Canaã (Gn 12:4-5) e também se refere ao nome de um dos irmãos de Abraão (Gn 11:27-28). Porém, ao menos na redação final do texto, Abraão sai inicialmente de Ur, para depois se estabelecer em Harã (Gn 11:31). Ur se localiza na região da Mesopotâmia, que é exatamente a região de onde o povo do exílio babilônico voltou para Canãa. Abraão veio da mesma região dos exilados e sua viagem é um arquétipo para os atuais exilados que fazem o mesmo movimento.

Ao chegar da Mesopotâmia, diferentemente do que acontece na história da conquista da terra, Abraão se estabelece pacificamente. Ele é considerado, em meio ao povo da terra, ao mesmo tempo, “migrante e morador” na terra de Canaã (Gn 23:4). Abraão adquire suas terras sem conflitos. Teve que comprar o lote da terra onde poria o túmulo dos da família e fez segundo um “contrato verbal”, que é um eco dos contratos da época neobabilônica (Gn 23). Também Jacó teve que comprar um lote de terra perto de Siquém, onde fixaria as tendas (Gn 33:18-20). A posse dos poços do Neguev teve que ser discutida e depois negociada entre Isaque e o rei de Gerar (Gn 26:15:33). Observe que a promessa divina diz respeito à multiplicação da descendência futura, pondo em evidência a preocupação de uma adequação numérica para ocupar com sucesso uma terra prometida por Deus (ou pelo imperador persa), mas ocupada por outros (Gn 26:3-5; 12:2; 15:5; 17:6; 18:17-19; 22:16-18, etc).

Um dos maiores problemas relatados nos livros de Esdras-Neemias é a questão dos casamentos mistos, casamentos entre os judeus e o povo estrangeiro. O tema é tão importante que apenas essa problemática ocupa 2 dos 10 capítulos do livro de Esdras e sob este assunto ambos os livros são concluídos (Ed 9-10; Ne 13:23-31). Isso seria uma iniquidade gravíssima e era motivo exclusão da comunidade, confisco de bens (Ed 10:7-8) e agressão física e verbal (“... amaldiçoei-os e bati em diversos, arranquei-lhes os cabelos e ordenei-lhes em nome de Deus ‘Não deveis dar vossas filhas aos filhos deles, nem tomar como esposa, para vossos filhos ou para vós mesmos, algumas das filhas deles!’” - Ne 13:25). Inclusive, não apenas o casamento, mas os povos estrangeiros são tão abominados que qualquer contato cultural com eles deveria ser eliminado (Ne 13:1-3). Esse comportamento reflete as ideias do Grupo Radical (dissertaremos mais sobre ele adiante), que saiu vencedor na disputa, mas entra em conflito com o pensamento refletido nas histórias dos patriarcas.

Essa imagem negativa dos povos estrangeiros não apenas não está presente, de forma geral, nos textos dos patriarcas, mas é antagônica. Abraão possui uma mulher egípcia, Agar. Isaque casa com Rebeca e Jacó casa com Raquel e Lia, todas arameias. José toma por mulher Asenet, uma egípcia.

Abraão é tio e parceiro de viagem de Ló, pai dos moabitas e amonitas. Mas a parentela não para por aí! Os israelitas e os edomitas são tidos como irmãos (Esaú, pai dos edomitas é irmão de Jacó, pai dos israelitas). Também Abraão é pai de Ismael (pai dos ismaelitas/árabes, que inclusive é circuncidado) e de Midiã (pai do midianitas). De Nacor, irmão de Abraão descendem os arameus.


Origem dos povos
(Clique na imagem para ampliar)


Além disso, as relações demonstradas nas histórias dos patriarcas refletem o contexto político do período pós-exílico. Um dos vários exemplos é a relação entre Edom e Israel. Edom era um reino que se desenvolveu tardiamente a já havia sido, inclusive, vassalo de Judá. Porém, com os ataques babilônicos, o exílio e o enfraquecimento de Judá, os edomitas povoaram as partes meridionais de Judá, o vale de Bersabeia e as colinas de Hebron (uma região que logo seria conhecida como Idumeia - terra dos edomitas) e se tornaram uma nação mais poderosa que Judá. O retorno de Jacó à sua terra e seu encontro com o seu irmão que ficou por lá ocorre em um clima de sujeição e temor do primeiro em relação ao segundo e em uma situação em que o primeiro, tendo voltado de longe, deve encontrar espaço em uma terra que o segundo, que ficara ali, já ocupa (Gn 32-33). O mesmo vale para relações com arameus, árabes, etc em relação ao mesmo período da história que também podem ser identificadas nos elementos dos textos.

Outro caso interessante também é o episódio de Diná e Siquém (Gn 34). Há alguns epônimos em destaque na história: Siquém é pai dos siquemitas e Levi é pai dos levitas (o pessoal do templo). Após violentar Diná, Siquém passou a amá-la e desejou casar com ela. Porém, havia um obstáculo os filhos de Israel não podem se casar com estranhos incircuncisos. Para solucionar o problema, é realizado um acordo definindo que se houvesse circuncisão poderia haver o casamento. Porém, assim Levi e Simeão (representando o Grupo Radical) matam os siquemitas. Jacó (representando o Grupo Maneável) repreende os dois e posteriormente os amaldiçoa por seu rigor e sua dureza (Gn 49:5-7).

Abimeleque, de Gerar, é tratado como justo e questiona a Deus: “Farias perecer uma nação mesmo que ela fosse justa?” (Gn 20:4). Porém, o outro lado também ecoa: em contraposição, há registrada a resposta do debate do outro grupo onde o posicionamento é o de que não há justos entre os entre os estranhos (ver Gn 18:20-19:29, onde Abraão intercede por Sodoma e Gomorra tentando encontrar 50 justos, depois 45 justos, depois 40, depois 30, 20, e, por fim, 10 justos que salvariam as cidades, mas, ao final, as cidades são destruídas).

Mas não é só o grupo dos sobreviventes do exílio que utilizam o mito de fundação patriarcal para fins políticos. Segundo Ezequiel 33:24, nos tempos do exílio, o pessoal que ficou na terra utilizava Abraão para embasar a sua confiança na posse da terra. Claro que a versão da história de Abraão que temos em mãos é a versão sancionada pelos descendentes da elite religiosa que retornou do exílio. Embora certos debates e até mesmo opiniões bem divergentes tenham permanecido nos textos bíblicos, muita coisa, ao certo, foi vetada ou editada.

 

A teologia/política do Grupo Radical – Êxodo e conquista da terra

As pesquisas mais atuais sobre o Pentateuco mostram que, de início, o ciclo narrativo das histórias patriarcais e o ciclo narrativo das histórias do êxodo e da conquista da terra se tratavam de mitos de fundação independentes. Não havia ligação entre um e outro. As raras vezes em que os patriarcas são mencionados nos textos do êxodo e da conquista, como na apresentação de Yahweh a Moisés em Êxodo 3:6 (“Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó”) ou nos pequenos credos históricos (Dt 26 5b-9; Dt 6:20-23; Js 24:2b-13), são meras intervenções tardias para ligações das histórias. Segundo Jean Louis Ska em seu livro “Introdução à Leitura do Pentateuco”, a escola deuteronomista foi a primeira a criar o vínculo entre estas histórias.

No mito de fundação do êxodo e da conquista da terra, o povo passa também por uma situação similar aos tempos do retorno pós-exílico. Eles vem de outra terra, onde estavam dominados por outros povos e chegam em Canaã. Quando eu era criança e lia os textos do êxodo, uma coisa que me chamava a atenção era como o povo da história era estúpido. O mesmo povo que foi libertado da escravidão, que viu as pragas, o mar se abrindo, as colunas de fogo e nuvem, o monte Sinai inteiro fumegante, com trovões e se estremecendo, os vários milagres, o mesmo povo que não aguentava a pressão de ouvir a voz de Yahweh, achando que iria morrer, esse mesmo povo frequentemente desconfia do poder de Yahweh e quer voltar para o Egito. O povo dizia que no Egito havia fartura e que seria melhor ter permanecido lá do que ir para a terra de Canaã. Seria impossível um povo ser tão idiota!  Como sempre, a ideia não é relatar a história, mas sim trabalhar questões do momento atual. Como relata Werner H. Shimidt em seu livro “Introdução ao Antigo Testamento”, os textos provindos da fonte sacerdotal, substituem o termo “povo” (‘am) pelo termo “comunidade” (‘eda). A ideia é se refererir à comunidade pós-exílica, onde muitos murmuravam querendo voltar para a Babilônia (o “Egito”), onde já estavam bem estabelecidos e havia fartura (tanto que muitos nem quiseram retornar de lá para a Judeia/Canaã). Afinal, a situação não era boa. Judá estava com o território reduzido, Jerusalém estava em ruínas e havia um povo estranho na terra. Para muitos, seria melhor ter permanecido na Babilônia. Além disso, as reclamações não fazem sentido.

Por exemplo:

“... Antes fôssemos mortos pela mão de Yahweh na terra do Egito, quando estávamos sentados junto à panela de carne e comíamos pão com fartura...” (Ex 16:3)

Como o povo que era escravo, sem direito algum (a ponto do Faraó já ter ordenado que todos os filhos homens fossem mortos), poderiam ter fartura no Egito?

Faz mais sentido pensarmos nas reclamações de alguns dos que estavam voltando da Babilônia, onde já estavam estabilizados e tinham fartura, ao chegarem à terra de destino que estava devastada.

“Por que nos fizeste subir do Egito para nos conduzir a este terrível lugar? É lugar impróprio para semeadura, sem figueiras, nem vinhas, nem romãzeiras e até mesmo sem água para beber!” (Nm 20:5)

Lugar impróprio para semear? Primeiro que o lugar para o qual Deus os estava conduzindo não era o deserto, o deserto era o caminho para o destino que era a terra de Canaã. Em segundo lugar, por que eles estavam querendo semear no caminho (que inclusive era um deserto)? Segundo a história, eles não deveriam se estabelecer ali, mas na terra de Canaã.

Faz mais sentido pensarmos nas reclamações de alguns que estavam voltando do exílio babilônico. Judá fica em uma região montanhosa, com solo muito pior para a agricultura do que a Babilônia, que era fértil, banhada pelos grandes rios Tigre e Eufrates e seus afluentes, não dependendo de chuvas sazonais, como Judá.

Os textos são produzidos para tratar demandas sociais do presente momento em que são escritos. Seria fácil contra argumentar essas ideias, colocando-as na boca de antigo povo rebelde, que pecou contra Yahweh, queria voltar a ser escravo e que não herdou a terra prometida.

A resposta dada pelo texto é a provisão de Deus que não falhará, pois se necessário, Deus pode fazer chover pão, trazer carne e, se não há rios, pode fazer jorrar água da rocha ou montanha.

Cabe ressaltar que utilizar elementos da história do êxodo como paralelo ao exílio estrangeiro é extremamente natural. É tão natural que já era realizado antes mesmo no exílio assírio do reino do norte, Israel. Oséias relata o perigo de Israel ser levado para a Assíria tratando a Assíria como uma espécie de “novo Egito”. Veja alguns dos vários exemplos contidos no livro:

“Efraim é uma pomba simplória, sem entendimento, chamam o Egito, correm para Assíria.” (Os 7:11)

“À guisa de sacrifício, imolam carne e comem-na, mas o Senhor não se compraz nisso. Agora ele recorda as suas faltas e pede contas de seus pecados. Terão de voltar ao Egiito.” (Os 8:13)

“Efraim voltará para o Egito, na Assíria comerão alimento impuro.” (Os 9:3)

“Eles caminharão atrás de Yahweh. Ele rugirá como um leão, e quando ele rugir, os filhos virão tremendo do ocidente. Como um pássaro eles virão tremendo do Egito, como as pombas da terra Assíria. E eu os farei habitar em suas casas.” (Os 11:10-11)

OBS: Este texto é considerado, por muitos, pós-exílico. Neste caso, os paralelismos são concomitantes. O exílio babilônico de Judá usa como paralelo a figura do exílio assírio de Israel, que, por sua vez, também é paralelo à estadia no Egito.

Não é à toa que, por exemplo, em Jeremias, vemos mais de uma vez a ideia de que o “novo êxodo” seria o novo marco principal se sobrepondo ao “antigo êxodo”:

“Por isso, eis que dias virão – oráculo de Yahweh – em que não se dirá mais: ‘Viva Yahweh, que fez subir os israelitas da terra do Egito!’ Mas sim ‘Viva Yahweh, que fez subir os israelitas da terra do Norte e de todas as regiões, para onde os tinha dispersado.’ Eu os reconduzirei à terra que dera a seus pais.” (Jr 16:14-15, ver também Jr 23:7-8)

Como o Liverani afirma: “Como conclusão do processo, nos séculos VI-V toda a história do êxodo e da conquista de Canaã foi reelaborada em relação dos episódios atuais da deportação da babilônica e do retorno dos exilados; em função então de um “novo êxodo” que fosse prefigurado pelo mítico.”

Mas, como já dito, o Grupo Radical preferia utilizar a sua política baseada nos textos do êxodo e da conquista da terra. Para esse grupo não era tolerável o contato com o povo estranho que habitava a terra de Canaã. Nos textos do êxodo e da conquista, a terra foi tomada de forma violenta a ponto de exterminar o povo que habitava a terra.

Em Números 14, a comunidade de Israel, ao saber das notícias dos povos que habitam a terra, passa a ter medo destes povos. Josué busca reanimar a comunidade dizendo: “... Não tenhais medo do povo dessa terra, pois os devoraremos como um bocado de pão...” (Nm 14:9). A designação de povo da terra é uma designação especial. Em Esdras-Neemias este termo se refere ao povo que habita a terra de Canaã no período pós-exílico. É um povo que é considerado antagonista na história. Veja Ed 3:3; 4:4; 9:1-2, 11; 10:2, 11; Ne 9:24, 30; 10:29-32; etc. Inclusive, os textos de Esdras relatam o medo que os que retornaram do exílio possuíam dos “povos da terra”:

“Restabeleceram o altar em seu lugar – apesar do medo que tinham dos povos das terras...” (Ed 3:3)

“Então o povo da terra pôs-se a desencorajar o povo de Judá e a atemoriza-lo para que não construísse mais” (Ed 4:4)

Deu para entender para quem o texto de Números está falando?

Mas ainda tem mais. Os povos derrotados por Josué são frequentemente tratados por uma lista estereotipada de alguns povos. Estas listas são mencionadas em Dt 7:1; 20:17; Ex 3:8; Gn 15:20; Js  3:10; 9:1; dentre muitos outros locais. Há algumas variações nos povos citados em alguns casos. Com exceção do termo genérico “cananeus”, que de fato, habitavam Canaã, os povos da lista são anacrônicos ou imaginários. Alguns exemplos:

Hititas/heteus: Nunca habitaram a região de Israel. Porém, um costume estrangeiro, originado pelos assírios e herdado pelos babilônios e persas (e até pelos gregos) era o de chamar a região da Síria e Canaã de Khatti (“terra hitita”).

Amorreus: Habitaram a região da Síria em períodos remotos, na Idade do Bronze. Um outro costume assírio e babilônico de dividir o mundo em 4 partes, denominava o ocidente composto pelas regiões da Síria e Canaã de Amurru (antigo reino dos amorreus). Inclusive, documentos assírios esclarecem que “Amurru significa Khatti”.

Perisitas, enaquins, refaítas: Povos imaginários. Resumidamente: Os perisitas são camponeses não citadinos, os enaquins são gigantes lendários, os refaítas são espíritos dos mortos na religião canaanita (é possível também que haja uma associação com gigantes lendários por questão do rei Ogue que é tratado como gigante e refaíta)

Jebuseus, gergeseus, heveus: não se sabe nada sobre eles. Presume-se que tenham tido origem de topônimos ou histórias nitidamente locais.

Por conclusão, a tradição de hititas e amorreus habitando as terras de Canaã é posterior ao exílio, onde tiveram contatos com povos que denominavam aquela região de Khatti e Amurru. Os outros povos são imaginários. O que é engraçado é que os povos que são destruídos são povos que nunca habitaram aquela região ou que nunca sequer existiram. Por exemplo: Na região da Transjordânia são eliminados os refaítas e amorreus, mas os moabitas e amonitas são mantidos no seu local. Na região do Negev, se exterminan os “gigantes”, mas não se consegue fazer nada contra os filisteus e amalequitas. Extermina-se quem não existe e o fato de não existirem é utilizado como “evidência” de que foram exterminados.

Onde eu quero chegar comentando sobre estas típicas listas de povos? Em Ed 9:1, no período pós-exílico, os povos que permaneceram na terra são equiparados a estes povos da conquista por Josué.

“... O povo de Israel, os sacerdotes e os levitas não se separaram dos povos das terras mergulhados em suas abominações – cananeus, heteus, ferezeus, jebuseus, amonitas, moabitas, egípcios e amorreus!” (Ed 9:1, ver também Ne 9:8)

Os povos que habitavam a terra no período pós-exílico são identificados com os povos estrangeiros que habitavam Canaã durante a conquista de Josué. O extermínio destes povos estrangeiros, prática conhecida como “herem” (“anátema), consistia na total eliminação daqueles povos. A prática do herem é explicada em Js 6:17-21. Todo o ser vivo deveria ser exterminado. Todo o tesouro iria direto para o templo (conveniente, não?). Em Js 7, sabemos da história de Acã, que tomou para si alguns objetos de valor que deveriam ser levados para o templo. Por resultado, Acã é apedrejado e os objetos levados para o templo.

Outros textos que abordam a prática do herem são Dt 7:1-6; 20:15-18; Nm 21:1-3. Havia algumas exceções, por exemplo, em algumas vezes o gado poderia ser salvo (Dt 2:34-35; Dt 3:6-7; Js 8:26-28).

A ideia pós-exílica é bem clara, como relatada nos livros de Esdras e Neemias. “Foi excluído de Israel todo o elemento estrangeiro.” (Ne 13:3)

Como já dito anteriormente, o caso dos casamentos mistos era algo de extrema importância na comunidade pós-exílica. De forma contraria ao que vemos nos textos patriarcais, a ordem aqui é “Não contrairás matrimônio com elas, não dará tua filha a um de seus filhos, nem tomarás uma de suas filhas para o teu filho.” (Dt 7:3).

Vejamos o caso das mulheres moabitas e midianitas. Em Nm 25, mulheres moabitas levam o povo a pecar. Os envolvidos com as mulheres foram mortos. Zambri, um homem que havia ficado com uma mulher midianita, foi morto e uma praga, que havia sido enviada por Yahweh e matado 24 mil pessoas, cessou. No consequente episódio da guerra contra Midiã (Nm 31), os israelitas matam os homens, mas tomam por despojo as mulheres. Moisés repreende os israelitas, dizendo que as mulheres estrangeiras são motivo de pecado do povo e ordena que sejam mortas (neste caso, temos uma exceção: as virgens se salvam). Posteriormente, é feito um tratado sobre os despojos incluindo um imposto para o templo sobre gado e pessoas. Os objetos de ouro são integralmente ofertados ao templo (os sacerdotes do templo deixavam claros os seus interesses financeiros).

Só para ninguém se confundir: essa ideia de extermínio é formulada mais no sentido utópico. Na prática, servia para legitimar a exclusão dos elementos estrangeiros no meio do povo que deveria ser “santo”.

Como vimos no tópico anterior, Edom foi um reino que tomou terras de Judá durante o exílio e se tornou mais poderoso que Judá. No texto patriarcal, vemos essa relação entre o temeroso Jacó diante de Esaú. Em Nm 20:14-21, vemos também um clima de sujeição de Israel a Edom. Porém, diferentemente dos textos que contam as histórias patriarcais, o texto de Números trata Edom negativamente, negando a passagem ao povo de Israel.

As tradições escritas não foram desenvolvidas para serem guardadas como em um museu. O interesse pelo passado vem sempre acompanhado pelas preocupações com o presente. O poder de transportar os textos para as questões atuais é imenso.

“Não foi com nossos pais que Yahweh firmou esta aliança, é conosco que estamos aqui, todos vivos.” (Dt 5:3)

É interessante notar também outra questão. O sumo sacerdote que volta do exílio junto com o grupo de Zorobabel com a missão de reconstruir o templo de Jerusalém possui qual nome? Josué. Trata-se de um fortíssimo apelativo para a política da nova conquista da terra.

OBS: Não quero deixar de citar que pode até haver um eco da voz do Grupo Maneável nos textos que apresentam Moisés casado com uma mulher estrangeira (Ex 2:11-22; Nm 12:1). Porém, percebe-se bem claramente o foco na visão negativa em relação aos estrangeiros nos textos do êxodo e da conquista da terra.


Conclusão

Como disse, o Grupo Maneável parece ter tido um maior apoio no início. Porém, após a chegada de grupos mais radicais (como confirmado pelos próprios livros de Esdras e Neemias) o Grupo Radical vence. Porém, esse caso não é um caso isolado. Há algo maior em questão. Trataremos isso, na PARTE 2.

IMPORTANTE: Este texto que você leu ainda não acabou! Há também a PARTE 2 (que é a parte mais importante) que está em outra postagem. Não deixe de lê-la. Para acessar a PARTE 2, CLIQUE AQUI.

Referências

As referências para ambas as partes estão contidas de forma conjunta ao fim do texto da PARTE 2.



domingo, 29 de março de 2020

UM BREVE RESUMO DA TEOLOGIA PAULINA


Introdução


Há uns meses, reli todas as cartas paulinas (e também as deutero e trito paulinhas). Com isso, fui realizando algumas anotações e, baseado na minha leitura, fiz um breve (bem breve) resumo da teologia paulina, mais especificamente no aspecto de uma, digamos, “história da salvação”. Segue:

Um Breve Resumo da Teologia Paulina


Todo o homem, por si só, é perverso, injusto, inimigo de Deus, mentiroso. O homem não busca a Deus. Não pratica o bem. [1]

A Lei (mosaica) foi dada para que o homem conhecesse o que é o pecado. [2] Entretanto, homem algum conseguiu cumprir a Lei. [3] E aquele que não cumpre ao menos uma das prescrições da Lei, é maldito. [4]

Os pagãos não estão isentos por não terem recebido a Lei (que foi entregue aos judeus), pois a Lei demonstra-se gravada em seus corações através da sua consciência que, diante de suas acusações, os acusa ou os defende. [5]

A Lei também foi dada para que se manifestassem as transgressões do homem. A Lei expõe a maldade do homem a fim de que “toda a boca se cale e o mundo inteiro se reconheça réu em face de Deus”. [6] A Lei também mostra a distância entre as ações injustas do homem e as ações justas de Deus. [7] Neste sentido, a Lei serviu também em sentido pedagógico. [8] O povo judeu foi escolhido para a ele serem confiadas as revelações de Deus. [9]

Portanto, a Lei, por si só, não resolveu o problema do pecado, pois deu a instrução, mas não deu o poder para que a instrução fosse cumprida. [10] Consequentemente, o pecado, apropriando-se da Lei, trouxe a morte por ela. [11] Antes da Lei, o homem não conhecia o pecado, mas sobrevindo a Lei, o homem passa a conhecer o pecado e se torna inescusável diante de Deus. [12]
Perante isso, foi manifestada a justiça de Deus. Deus, por sua boa vontade resolveu justificar o homem através da morte expiatória de Cristo de forma que todo aquele que cresse/tivesse fé na obra salvadora de Cristo seria, gratuitamente, justificado. [13] Portanto, a justificação não é mérito do homem, mas exclusivamente de Deus. [14]

Através da obra de Cristo, houve uma nova criação. Na criação antiga, pela desobediência do primeiro Adão, espalhou-se o pecado e a morte no mundo. Da mesma forma (e em quantidade ainda mais abundante), na nova criação, pela obediência do “novo Adão”, ou seja, Cristo, espalhou-se a justificação de Deus e a vida eterna. [15]

O homem, através da fé na justiça de Deus realizada através do ato de Cristo, passa pelo batismo. Pelo batismo, o homem se torna participante desta nova criação tornando-se nova criatura. Assim como ele submerge e emerge nas águas, ele morre e vive em Cristo, morrendo para a antiga criação e nascendo de novo para a nova criação. [16] Em paralelo à antiga criação, onde o homem foi criado à imagem de Deus, na nova criação, o homem é criado à imagem de Cristo. [17] Nisto, morto e recriado, o homem está livre das suas condenações, pois morreu o velho homem. [18] Da mesma forma, o homem está morto para a Lei que era parte da primeira criação. [19] Com isso, o novo homem, passa a seguir, não a Lei mosaica antiga, mas a nova Lei, a Lei de Cristo ou Lei do Espírito, que consiste não em caducidade da letra, mas apenas no simples preceito de amar ao outro. [20] Uma diferença fundamental em relação ao antigo estado e a Lei mosaica (onde o homem não possuía força para cumpri-la), é que, com o batismo, o homem recebe o Espírito Santo, que concede ao homem a força para cumprir a Lei de Cristo. [21]

Participando, desta morte e nova vida em Cristo, o homem se apropria das características de Cristo. Com isso, assim como Cristo foi ressuscitado por Deus, o homem, em sua nova vida, não está mais sob o domínio da morte e também há de ressuscitar através da ressurreição de Cristo. [22] Esta ressurreição não será apenas em espírito, mas em um corpo transformado, assim como, segundo Paulo, a planta nasce após a morte da semente, concluindo a ação criadora de Deus. [23] Além disso, assim como Cristo era filho de Deus, o novo homem passa a ser filho de Deus. [24]

OBS: Os grandes adversários de Paulo eram os cristãos judaizantes, que pregavam “outro evangelho”, onde havia a necessidade de se cumprir a Lei mosaica, o que ia de confronto com todo o raciocínio da teologia paulina.

Referências


[1] Rm 1:18-32; Rm 3:9-19

[2] Rm 7:7-8; Rm 3:29; Rm: 5:20; Rm 4:15

[3] Gl 3:11-12; Rm 3:21-23; Rm 3:1-19; Rm 5:12; Gl 6:13

[4] Gl 3:8-14

[5] Rm 2:1-16

[6] Gl 3:19; Rm 3:19-20; Rm 5:20

[7] Rm 3:5

[8] Gl 3:23-4:11

[9] Gl 3:1-2

[10] Rm 7:7-24; Rm 8:1-3a; Gl 3:11; Gl 3:21-23; Rm 3:20

[11] Rm 5:20-21; Rm 7:7-13; 1 Co 15:56

[12] Rm 5:13; Rm 2:1; Rm 4:15; Rm 3:19; Rm 5:20; Gl 3:19

[13] Rm 3:21-26; Rm 5:6-11; Gl 1:3-5; 1 Co 15:3; 2 Co 5:14-15; 1 Ts 5:9-10; 1 Co 5:7; Rm 4:25 (embora a tradição da morte expiatória de Cristo não tenha se originado em Paulo, mas na protoigreja, ele reproduz estas tradições pré-paulinas)

[14] Rm 3:27-30; Rm 4:2-8; Rm 9:16; 1 Co 1:27-29

[15] 2 Co 5:17; Gl 6:15; 1 Co 15:21-23; 1 Co 15:45-49; Rm 5:12-20; Rm 6:4 (ver também os discípulos de Paulo em Ef 2:15; Ef 4:24; Cl 3:9-11)

[16] Rm 6:3-4; Gl 3:25-27

[17] Rm 8:29

[18] Rm 6:3-11; Rm 8:1; Rm 8:31-39

[19] Rm 7:1-6; Gl 2:19-21; Gl 3:13-20; Gl 3:18; Gl 4:21-31; Gl 5:1-5; Rm 10:4; Fl 3:9

[20] 1 Co 9:20-21; Gl 6:2; Rm 8:2; Gl 5:14; Rm 13:8-10; Gl 5:6; 2 Co 3:6-18

[21] Rm 8:3-4; Rm 8:13-14; Rm 8:10; Rm 8:26-27; Gl 5:16

[22] Rm 8:10-11; Rm 6:4-11; 1 Co 15:12-23; 2 Co 4:14

[23] 1 Co 15:35-55; Rm 8:22-23; Fl 3:20-21; 2 Co 5:1-10

[24] Rm 8:14-17; Gl 4:1-7

A ORIGEM DE SATÃ

Introdução Engana-se quem pensa que a teologia contida na Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) é a mesma do começo ao fim. A Bíblia Hebrai...