Introdução
Quem pensa que política e religião não se misturam está muito enganado. A própria Bíblia é um livro muito político. Pretendo demonstrar em um texto alguns exemplos de questões políticas que influenciaram na elaboração dos textos bíblicos. Porém, ao escrever o texto, mesmo com tentativas de encurtá-lo, ele acabou ficando grande. Então, achei melhor dividi-lo em duas partes.
Na PARTE 1, que você pode acessar CLICANDO AQUI, faço uma contextualização do que estava sendo vivido no momento tratado e abordo as questões acerca do debate político entre os sobreviventes do exílio babilônico em relação a como lidar com os povos que eles encontraram na terra para a qual retornaram. Temos duas ideias conflitantes refletidas nos textos (1) dos patriarcas e (2) do êxodo e da conquista da terra.
Na PARTE 2, que é constituída por essa postagem, abordo o debate entre um grupo que, após o retorno do exílio babilônico, era a favor da instituição da monarquia e outro grupo que era contra a instituição da monarquia. O segundo grupo vence (não há o que esconder). Em seguida, demonstro como foi a ascensão do poder sacerdotal como governantes políticos na Judeia. Conhecer sobre o domínio político sacerdotal foi um “divisor de águas” na minha compreensão dos textos bíblicos. Pude perceber a intenção política sacerdotal em muitos textos que antes eu não via nada de mais. E é esse o ponto onde eu, de fato, quero chegar. Entretanto, para chegar nessa parte, acho importante, por questões didáticas, passarmos pelo conteúdo da PARTE 1 a fim de que o leitor passe, antes, por uma contextualização do período e por, pelo menos, um exemplo do uso da política na composição dos textos bíblicos. Portanto, saiba que o conteúdo principal está na PARTE 2. Mas não deixe de ler, antes a PARTE 1, pois acredito que será importante para a compreensão da segunda.
Contextualização
Após a leitura da PARTE 1, veremos, adiante, um outro debate que foi realizado no período. Este debate está relacionado à estrutura político-administrativa de Judá/Israel.
Como afirma Liverani, a partir de 587 e pelo menos até 515, sob os reis babilônicos e sob os imperadores aquemênidas, de Ciro a Dario, a Judeia ficou sem uma autoridade política formal com os negócios locais geridos por juízes e anciãos. Um exemplo de caso análogo seria o de Tiro, que foi governada por juízes e, inclusive, temos documentada a lista deles.
O livro de Juízes não descreve fatos históricos. Embora alguns elementos podem sim ter se originado de tradições antigas com algum fundo histórico (por exemplo, a história de Abimeleque) não havia sequer como haver uma fonte escrita para os episódios, visto que as histórias querem ser situadas em um período sem estruturas estatais, que são necessárias para o desenvolvimento da escrita. Neste momento da época persa, alguns podem ter optado, com base nas lendas dos juízes, em se manter essa estrutura governamental. Esta opção seria interessante para o povo que não foi deportado. Porém, um debate mais marcante foi realizado entre seguir ou não o modelo monárquico.
Com a destruição babilônica, o regime monárquico teve o seu fim em Judá. Entretanto, havia o debate entre (1) voltar a uma estrutura real, mantendo um estatuto de reino (ainda que sem condições de se livrar da soberania persa), obviamente apoiado pelos considerados descendentes davídicos, ou (2) adotar o modelo de cidade-templo, calcada no modelo babilônico, cujo modelo era apoiado pelo clero e podia ser mais simpático aos senhores persas.
Os vencedores serão os apoiadores do modelo da cidade-templo. Este modelo seria tratado como um “reino”, não governado por homens, mas pelo próprio Yahweh, através de sua casa, o Templo. Podemos detectar ainda nos textos bíblicos as vozes desse debate.
Textos em Juízes
Os textos das histórias de apêndices ao livro de Juízes (Jz 17-21) são trabalhados, certamente, por um redator pró-monárquico. Este trecho do livro conta trágicas histórias que relatam violência física, violência sexual, furto, idolatria, impunidade, etc que visam demonstrar o caos em uma sociedade anárquica. A propaganda pró-monárquica é clara e o “refrão” é repetido várias vezes no decorrer dos textos, inclusive, nas últimas palavras do livro: “Nesse tempo não havia rei em Israel, e cada um fazia o que lhe parecia correto.” (Jz 17:6; 18:1; 19:1; 21:25).
Por outro lado, a voz antimonárquica, é demonstrada na história de Abimeleque (Jz 9) que foi inserida em meio às histórias dos juízes. A história também é trágica. Abimeleque é filho de Gideão e, com apoio dos senhores de Siquém, se torna rei. Com isso, com o dinheiro sujo do templo de Baal-Berit, contrata vadios e aventureiros e mata seus setenta irmãos eliminando a concorrência ao trono. Apenas um irmão, Joatão, escapa. Joatão levanta um interessante apólogo antimonárquico (Jz 9:7-15) e prediz a morte de Abimeleque e os senhores de Siquém. Por fim, o que Joatão prediz acontece e, de forma trágica, acaba a história e o pequeno período monárquico de Abimeleque.
Instituição da monarquia em Israel - Saul
Outro exemplo deste debate ocorre na história da instituição da monarquia em Israel através de Saul (1 Sm 8-12). Este texto tem vários problemas: Em uma das vertentes, Saul é ungido rei por Samuel (1 Sm 9-10:16). Em outra, Saul é designado rei por sorteio (1 Sm 9:17-27). Ainda parece haver uma terceira, onde Saul é proclamado rei pelo povo após libertar o povo de Galaad dos amonitas (1 Sm 11). A redação final parece tentar unir estes textos.
Alguns autores, como Martin Noth, discorrem sobre o texto, em sua atual forma, ser fruto de um texto mais antigo, pró-monarquico, e outro mais recente, antimonárquico.
A passagem de 1 Sm 9-10:16 pinta uma figura da origem da
monarquia em Israel como vinda diretamente da espontânea e graciosa iniciativa
de Yahweh, que tem visto a aflição de Israel e ouvido o seu pranto, então Saul
é enviado a receber a unção profética como chefe (nãgid), rei designado, aquele
que salvará o povo de Yahweh.
1 Sm 9:16b: “Unge-o como chefe do meu povo Israel e ele salvará meu povo da mão dos filisteus, porque vi meu povo, e o seu grito chegou até mim.”
A fórmula em que Yahweh vê o sofrimento, ouve o grito do povo e levanta, por sua própria iniciativa, um libertador para o povo é típica.
Ex 3:7-10: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois conheço suas angústias... Agora o grito dos israelitas chegou até mim, e também vejo a pressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas.”
Em meio a textos que ressaltam a vantagem de ter um rei, como a libertação dos povos inimigos, textos que ressaltam as qualidades de Saul, textos que tratam os seguidores de Saul como “valentes cujo coração Deus tocara” e os que o desprezaram como “vadios”, é inserida posteriormente uma nova versão: a história do pecado do povo ao pedir um rei. Embora haja interferências no meio do texto, essa intervenção redacional é mais marcante nos blocos inicial e final emoldurando a história (capítulo 8 e capítulo 12).
No capítulo 8, o povo de Israel, querendo ser como as outras nações (esquecendo que é um povo santo, separado dos demais) (v. 5), pede a Samuel que constitua um rei para reinar sobre Israel. O pedido é interpretado como algo negativo. O pedido desagrada a Samuel e é tratado como uma renúncia à Yahweh. Israel deveria ser um povo cujo rei fosse o próprio Yahweh e não um rei humano.
1 Sm 8:7: “Yahweh, porém, disse a Samuel: ‘Atende a tudo o que te diz o povo, porque não é a ti que eles rejeitam, mas é a mim que eles rejeitam, porque não querem mais que eu reine sobre eles.”
Cabe ressaltar que quando se diz que Israel deve ser governado por Yahweh, significa que Israel deve ser governado pelo templo e consequentemente pela elite religiosa que administra o templo. Ser governado por Yahweh é ser governado pelos líderes religiosos que elaboram a tradição religiosa e têm o poder de botar na boca de Yahweh o que bem entendem.
Em seguida o texto compara o pedido do povo à idolatria. Após o povo pedir um rei à Samuel, Yahweh diz o seguinte:
1 Sm 8:8-9: “Tudo o que têm feito comigo desde o dia em que os fiz subir da terra do Egito até agora – abandonaram-me e serviram outros deuses – assim fizeram contigo. Agora, escuta a voz deles. Mas, solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei que reinará sobre eles.”
O passado monárquico era real. Não havia como dizer que o povo nunca teve rei. Yahweh tinha que aceitar o pedido do povo. Porém, fazer uma releitura histórico/religiosa da instituição monárquica era algo simples para quem detinha o poder religioso. Em seguida, Samuel explica os inconvenientes da realeza de forma bem detalhada.
1 Sm 8:11-19a: “’Ele disse: ‘Este será o direito do rei que reinará sobre vós: ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; ele os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas e os vossos melhores olivais e os dará aos seus servos. Da vossa semente e das vossas vinhas, ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos, ele os tomará para seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos. Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas Yahweh não vos responderá, naquele dia!’
O povo, no entanto recusou-se a atender a palavra de
Samuel e disse: ‘Não! Nós teremos um rei e seremos nós também como as outras
nações.’”
No capítulo 12, a fins de comparação com a exploração que a realeza traz ao povo, Samuel deixa claro que nunca explorou o povo enquanto esteve à frente dele. É importante ressaltar que Samuel não é rei, mas é um representante de Yahweh semelhante aos líderes religiosos que certamente se apropriam da figura de personagens como este.
1 Sm 12:1-5: “Então disse Samuel a todo o Israel: ... ’De agora em diante, será o rei que marchará à vossa frente... Deponde contra mim, diante de Yahweh e do seu ungido: de quem tomei o boi e de quem tomei o jumento? A quem explorei e a quem oprimi? Da mão de quem recebi a compensação para que fechasse os olhos diante do seu caso? Eu vos restituirei.’ Eles, porém, disseram: ‘Tu não nos exploraste nem nos oprimiste e de ninguém tiraste coisa alguma’. Ele lhes disse: ‘Yahweh é testemunha contra vós, e o seu ungido é hoje testemunha de que nada achastes em meu poder’. E o povo disse: ‘Ele é testemunha’.
Em seguida, Samuel relembra o passado em que Yahweh libertou o povo do Egito e da opressão de povos vizinhos e diz: “Apesar de tudo... vós me dissestes: ‘Não! É preciso que um rei reine sobre nós.’ No entanto, Yahweh vosso Deus é o vosso rei.” (1 Sm 12:12)
Após isso, o texto deixa claro que o povo cometeu um pecado ao pedir um rei: “’Reconhecei claramente como foi grave o mal que cometestes contra Yahweh pedindo um rei para vós’. Então Samuel invocou a Yahweh e ele fez que viessem trovoadas e chovesse naquele mesmo dia, e todo o povo se encheu de medo de Yahweh e de Samuel. Todo o povo disse a Samuel: ‘Intercede por nós, teus servos, a Yahweh teu Deus, para que não morramos, pois a todos os nossos pecados acrescentamos a desgraça de pedir um rei para nós.’” (1 Sm 12:17b-19)
Messianismo
Em cerca de 520 AEC, retorna para a Judeia, o grupo de exilados liderados por Zorobabel e Josué. Zorobabel era neto do rei Jeoaquim, que foi deportado para a Babilônia na primeira deportação (antes da destruição da cidade sob Sedecias). Zorobabel era representante da casa davídica. Josué era sumo-sacerdote.
Durante o exílio, a “casa de Davi” tinha mantido um certo prestígio régio na comunidade dos exilados. Em 562, Evil-Marduque sucede Nabucodonosor no trono Babilônico. O novo rei festejou sua entronização com uma anistia de que se beneficiaram (ao que sabemos) seja o rei de Tiro, Merbalos, que foi mandado de volta para a sua cidade, seja em forma menos completa Jeoaquim, que se tornou uma espécie de “hóspede” que, inclusive, comia à mesa do rei (2 Rs 25:27-30; Jr 52:31-34). Reconhecido como “rei de Judá” pelos caldeus, Jeoaquim o era até mais, obviamente, pelos sobreviventes judeus na Babilônia, para os quais fazia o papel de chefe da comunidade por todos respeitados. Inclusive, seu filho Sasabassar, é chamado de “príncipe de Judá” em Esdras 1:8 e seu neto, Zorobabel, é chamado de “governador da Judeia em Ageu 1:14 e 2:21. Tanto Sasabassar quanto Zorobabel possuem papeis de importância nos episódios do retorno do exílio.
Os exilados ainda mantinham na “casa de Davi” uma esperança de retomada nacional (exemplo: Ezequiel 37:24-27). O ponto alto da monarquia em toda a história israelita é sobre os reinos de Davi e Salomão. Para situar, o império persa é dividido em satrápias, que eram subdivididas em províncias, e a província da Judeia se localizava na satrápia persa chamada Transeufratênia ou “Além-Eufrates”. Sucedendo Davi, o reino de Salomão atinge exatamente o limite da satrápia persa, que corresponde ao Eufrates ao norte e a chamada “torrente do Egito” ao sul. Esta mesma extensão de terra designa a terra prometida por Deus a Abraão. O fato dos redatores bíblicos colocarem a terra prometida e conquistada durante o período monárquico como sendo constituída pelos limites da satrápia persa não poderia deixar de ter intenções políticas.
Zorobabel, volta para a Judéia com uma missão especial: reconstruir o templo. Os templos no Antigo Oriente eram construídos por reis (assim como é atribuída a Salomão a construção do primeiro templo). É natural que sobre Zorobabel tenham sido depositadas esperanças de um glorioso retorno monárquico. Ageu, profeta contemporâneo a Zorobabel levanta profecias que revelam um messianismo sobre Zorobabel:
Ag 2:20-23: “A palavra de Yahweh foi dirigida, segunda vez, a Ageu, no vigésimo quarto dia do mês, nos seguintes termos: Fala assim a Zorobabel, governador de Judá: Eu abalarei o céu e a terra. Derrubarei o trono dos reinos e destruirei o poder dos reinos das nações. Derrubarei os carros e aqueles que os montam; os cavalos e seus cavaleiros cairão, cada qual pela espada de seu irmão. Naquele dia – oráculo de Yahweh dos Exércitos – eu tomarei Zorobabel, filho de Salatiel, meu servo – oráculo de Yahweh – e farei de ti um sinete. Porque foi a ti que escolhi, oráculo de Yahweh dos Exércitos.”
A ascensão da hegemonia sacerdotal
O que acontece a Zorobabel? Não se sabe. O personagem desaparece dos textos bíblicos. Talvez, devido ao crescimento do messianismo em torno de sua figura tenha sido chamado de volta pelos persas. Mas isso é apenas uma hipótese.
Com o desaparecimento de Zorobabel, o messianismo davídico perde força. O movimento passa a ver o messias como uma figura de um futuro utópico. Em alguns casos, surgem tendências de dimensionar as expectativas mais no plano pessoal-existencial do que no político-nacional. São indicativas as expressões do “Servo de Yahweh”, no Deutero-Isaías (Is 42:1-7; 49:1-9; 50:4-9), que acaba por se configurar na imagem do “justo sofredor” (52:13-53:12) mais do que na do messias. Surgem também algumas tendências onde se faz passar a função messiânica da pessoa do rei ao povo de Israel, ou a Jerusalém, polo de atração para o mundo inteiro (Is 60:3-5).
Mas um grupo distinto tende a ocupar a lacuna real, absorvendo as suas características: os sacerdotes. Enquanto em Ageu, a figura principal é Zorobabel. Na leitura posterior de Zacarias, a figura principal é o sumo-sacerdote Josué. Embora Zorobabel até receba o mérito de construtor do templo (Zc 4:6-10), uma crítica é feita: “Não pelo poder, não pela força, mas pelo meu espírito”.
Em Zc 3, o protagonista é o sumo-sacerdote Josué. Em Zc 6:9-13 é explícita a apropriação dos elementos monárquicos por parte dos sacerdotes. Veja o que se diz do sumo-sacerdote:
Zc 6:9-13: “A palavra de Yahweh me foi dirigida nestes termos: Faze uma coleta junto aos exilados... Tomarás a prata e o ouro e farás uma coroa e a colocarás na cabeça de Josué, filho de Josedec, o sumo-sacerdote. E lhe dirás: Eis um homem cujo o nome é Rebento [Rebento é uma designação real, davídica, veja em Jr 23:5, onde é utilizado o mesmo termo em hebraico צֶמַח (tsemach)]; de onde ele está, alguma coisa germinará e ele reconstruirá o templo de Yahweh. Ele reconstruirá o santuário de Yahweh; ele carregará insígnias reais. Sentará em seu trono e dominará. Haverá um sacerdote à sua direita. Entre os dois haverá perfeita paz.”
OBS: O texto entre colchetes foi adicionado por mim.
É plausível que, inicialmente, ao invés do nome de Josué, constava o nome de Zorobabel neste texto que, no caso, ainda teria sido escrito ainda sob a esperança de Zorobabel. Porém, essa alteração do nome apenas mostraria que o sumo-sacerdote ocupa claramente o lugar do rei nas leituras posteriores.
Com o passar do tempo o sacerdote vai se apropriando de características do rei. Se antes, o ungido era o rei, agora, o sacerdote passa a ser ungido e ninguém mais, além dele pode receber a unção, senão será penalizado (Ex 30:22-33). As vestes sacerdotais (Ex 28) vão se tornando apropriações das vestes que, antes, o rei utilizava (o manto, o éfod, a coroa...).
Se no período pré-exílico, quando ainda havia a monarquia, quem mandava no templo era o rei e os sacerdotes eram funcionários públicos submissos à realeza (Am 7:10-13), as releituras posteriores mostram uma situação diferente. Se no deuteronomista já é retratada uma imagem de um rei submisso à Lei (Dt 17:18-19), no cronista, o rei é um “operador cultual”, louvado porque edifica ou restaura o templo, porque faz reformas cultuais, porque assegura os recursos para a realização do culto. Diferentemente das demais sociedades do Antigo Oriente Próximo, em que as legislações se dão por iniciativa do rei (por exemplo: o Código de Hamurabi), e que provavelmente ocorreu no período monárquico com textos legislativos mais antigos, a Lei que se estabelece se apresenta como não sendo monárquica, inclusive precedente à própria instituição da monarquia.
Como diz Liverani: “O processo de tomada de poder por parte do sacerdócio deu-se pois, nos primeiríssimos anos do século IV, quando é provável (na incerteza cronológica de que já se falou) que tenha existido a missão em Jerusalém de um outro enviado imperial, o escriba e sacerdote Esdras. Sua missão foi provavelmente concebida pelos persas como de caráter legislativo, se cruzarmos a insistência do decreto de Artaxerxes (Es 7) sobre a ‘lei do Deus dos Céus’ – como um texto preciso (‘que tens nas tuas mãos’; é, portanto, um texto escrito) e feito pelo imperador – com o que sabemos ter acontecido no Egito pela ‘Crônica demótica’ segundo a qual Dario encarregou o sátrapa do Egito de reunir os sábios do lugar para que pusessem por escrito as leis do país e, depois, fizessem aplicar essas mesmas leis.
Encarregado provavelmente de compilar as leis do país, mas também de cuidar de sua aplicação com autorização imperial, Esdras acentuou notavelmente as implicações teológicas e políticas de seu mandato. Afirmando o fechamento total em relação ao ‘povo da terra’ e afirmando a autoridade suprema da Lei de Deus (ratificada pelo imperador, mas depois em operação local sem outros condicionamentos), Esdras deu início a uma nova fase da história hebraica. A cidade-templo, fechada em relação aos vizinhos e aberta aos correligionários da diáspora, é governada pelo sacerdócio como único legítimo intérprete da Lei. Com Esdras conclui-se a elaboração da Lei, fecha-se também a elaboração historiográfica, param de agir os profetas, e o sacerdócio de Jerusalém tem plenos poderes.”
Nas igrejas, nas EBD, costuma-se a ensinar sobre o silêncio profético, como se Deus parasse de falar por profetas naquele período. Na verdade, os profetas, que poderiam trazer uma crítica ao poder sacerdotal foram criminalizados. Veja:
Zacarias 13:1-6: “Naquele dia, haverá para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém uma fonte aberta, para lavrar o pecado e a mancha. E acontecerá naquele dia – Oráculo de Yahweh dos Exércitos -, que eu exterminarei da terra os nomes dos ídolos: eles não serão mais lembrados. Também os profetas e o espírito de impureza eu expulsarei da terra. Se alguém profetizar novamente, seu pai e sua mãe, que o geraram, dir-lhe-ão: ‘Tu não viverás, porque falaste mentiras em nome de Yahweh,’ e seu pai e sua mãe, que o geraram o transpassarão enquanto profetizar. E acontecerá, naquele dia, que os profetas terão vergonha de suas visões, quando profetizarem; e não vestirão o manto de pele para mentir. Cada um dirá: ‘Não sou profeta, sou homem que trabalha a terra, pois a terra é minha propriedade desde a minha juventude’. E se lhe disserem ‘Que são essas feridas em teu peito?’, ele responderá: ‘Aquelas que recebi na casa de meus amigos’.”
Se, antes, o profeta era o mensageiro de Yahweh, se sua boca era a boca de Yahweh (o profeta transmitia a informação de Yahweh para o povo e o sacerdote transmitia a resposta do povo para Yahweh), agora esse papel de mensageiro de Yahweh também é apropriado pelo sacerdote (Ml 2:7: “Porque os lábios do sacerdote guardam o conhecimento, e de sua boca procura-se o ensinamento: pois ele é o mensageiro de Yahweh dos Exércitos”).
Obviamente, isso não se deu sem debates. E aqui vai uma dica: sempre que ver a figura de Moisés fique com um pé atrás. Pois Moisés é arquétipo de sacerdote. Além disso, Moisés é o escritor da lei e também a representa. O texto de Nm 12 foi escrito sob a ótica desse debate. O mesmo vale para o texto de Dt 34, sobre a morte de Moisés. O texto informa que nunca mais surgiu profeta como Moisés. Moisés é maior do que todos os profetas. Nada que o profeta possa dizer, se equipara ao que Moisés diz, ou seja, à Lei. Porém, na verdade, a Lei é produzida pelo sacerdote. Em outras palavras, o texto de Dt 34 informa, para os judeus do período pós-exílico, que aquilo que o sacerdote diz é maior do que aquilo que o profeta diz. Repare que tanto em Nm 12, quanto em Dt 34, é utilizado o argumento de que Moisés, diferentemente dos profetas, conhece a Yahweh, face a face.
Em resumo, os profetas são perseguidos e mortos. Sobreviveram apenas os que fugiram para a periferia (João Batista, que profetiza no deserto, é exemplo disso).
Cabe ressaltar que o próprio Jesus morreu por qual motivo? Enquanto estava na Galileia, estava bem. Mas quando foi à Jerusalém, entrou no templo, e desafiou os sacerdotes, decretou a sua morte ali.
Por fim, os sacerdotes, conseguem tomar o poder.
Êxodo 19:5: “Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino sacerdotes, uma nação santa.”
Bônus: Sobre o Templo...
É importante ressaltar também a evolução que o conceito do templo ganha nesse período. Em todo o período anterior, o típico templo, na região do Levante, era bem simples. Basicamente, era um anexo do palácio real. Os sacerdotes eram uma das categorias de dependentes palatinos e do rei recebiam seu sustento. O templo sequer tinha possuía pátios, a participação popular, ficava fora do templo. Com o exílio, na Babilônia, os judeus tiveram contato com um modelo bem diferente de templo. Os templos da Babilônia e da Borsipa, de Nippur e de Uruk eram organizações bem complexas, dotadas de um poder econômico e político relevante. Os templos possuíam diversos anexos, escolas de artesãos, escolas de escribas e residências sacerdotais. Os templos possuíam também pátios para acesso dos fiéis. Sacerdotes e escribas do templo eram uma verdadeira classe dirigente que administrava a economia da cidade e do território, especialmente para as cidades (até importantes) que não eram a capital, e portanto, não tinham um palácio real. Além disso, o templo babilônico recebia diversas taxas (incluindo a “décima”), prebendas para serviços cultuais, aquisições votivas de pessoal, etc. Politicamente relevantes eram também as “isenções” ou “privilégios autonomistas” que os reis babilônicos conferiam às cidades dos templos e que, posteriormente, os persas adotaram, vendo nisso um bom modo de administrar grandes comunidades citadinas em um justo equilíbrio entre autonomia local e dependência imperial.
Ao voltar para Jerusalém para reconstruir o velho templo salomônico, o clero judaico tinha em mente esse modelo, que estava em função das relações com os imperadores, supria as fraquezas da monarquia davídica restante e assegurava aos próprios sacerdotes o modo de administrar a nova comunidade nacional até nas decisões políticas e sobretudo nas orientações legislativas e sociais.
Hoje, devido às construções tidas como extremamente sagradas, que se situam sobre o Monte do Templo, em Jerusalém, é impossível escavarmos o local onde, tradicionalmente, o templo havia sido construído. Porém, o modelo descrito nos textos bíblicos para o templo construído por Salomão possui vários elementos anacrônicos, como os pátios que já foram citados como provindos de um contato com os templos babilônicos. As dimensões também certamente não eram as mesmas. Cabe ressaltar que a lembrança que os judeus possuíam do templo anterior, eram referentes ao estado final do templo (antes da destruição dos Babilônios). Possivelmente, o templo que tinham em memória é mais por mérito de Josias do que do próprio Salomão. Mas preferiram imaginar que o templo ficara imutável por 4 séculos. É interessante que os mesmos tesouros do templo, normalmente creditados à Salomão, são roubados ou dados como tributo várias vezes como se sempre estivessem ali (1 Rs 14:25-26; 1 Rs 15:18; 2 Rs 12:19; 2 Rs 14:11-14; 2 Rs 16:8; 2 Rs 18:14-15; 2 Rs 24:13).
Cabe ressaltar que este anacronismo é aplicado não somente ao templo, mas também ao palácio de Salomão, que é descrito como um palácio em estilo persa, com data entre os séculos VI e V, semelhante à estrutura de Susa e Persépolis.
Diferentemente dos babilônios e assírios, que impunham um forte regime de deportações e enfraquecimento cultural dos povos dominados, os persas apoiavam as práticas culturais e religiosas dos povos dominados, inclusive, se necessário, dando suporte financeiro para construções de templos. Obviamente, o método era estratégico, se tratava de investimento. Estes templos serviriam de local de recolhimento de impostos, que seriam repassados à corte persa. Além dos exemplos que constam na bíblia sobre o apoio persa aos cultos dos judeus, podem ser observados diversos casos semelhantes como na Estela Trilíngue de Letoon (com isenções de impostos ao local do templo concedidas por Artaxerxes III), na inscrição de Magnésia (com a confirmação de Dario dos cultos locais), nos Papiros de Elefantina (com a autorização imperial sobre a celebração da Páscoa no Egito), etc.
Neste contexto, o templo assume o seu papel. Além de contribuições locais, o templo pôde contar com contribuições de zonas externas da Judéia (Zc 6:10). O templo assumiu (baseado no modelo babilônico), um papel de certo modo “bancário”, com concessão de empréstimos em condições privilegiadas – fator estabilizador na precária condição socioeconômica da população.
OBS: Sobre a estrutura administrativa, após o desaparecimento de Zorobabel e o fim do projeto monárquico, ainda houve govenadores locais (com o título “pehah”) sobre a Judeia por pelo menos um tempo. Depois do retorno de Neemias a Susa, parece que eles desaparecem. Os textos bíblicos dão a entender que o poder estava firme na mão da classe sacerdotal, pelo menos a partir da reforma de Esdras (estamos considerando Esdras no tempo de Artaxerxes II, sendo assim depois de Neemias e não segundo o relato bíblico, que coloca Esdras precedendo a Neemias para mostrar que a parte religiosa – estabelecimento da Lei - é mais importante que parte “secular” - construção de muros). A linha sucessiva dos grandes sacerdotes é possível ser reconstruída pelos dados bíblicos e por fontes como Flávio Josefo de forma concordante. Fora isso, a província estava dividida em nove distritos com um prefeito como chefe. Na capital, o autogoverno sobretudo judiciário estava assegurado por um “colégio de anciãos” (zeqenim) para a resolução de problemas correntes, mas as grandes escolhas legislativas eram de competências de uma “assembleia” (qahal) de que participavam todos os chefes de família (ro’sê há’abôt) da Judeia, e que era convocada com participação obrigatória (Esd 10:7-8). Porém, a centralidade do templo de Yahweh, absoluta e até enorme em proporção ao território, e os próprios critérios de auto-identificação etnoreligiosa dos judeus conferiram ao sacerdócio a guia efetiva da comunidade, guia que eles exerceram mediante a centralização de importante atividades econômicas e mediante o monopólio da interpretação da Lei, a qual lhes conferia a capacidade de regular todas as questões relevantes da comunidade.
Conclusão
É importante saber se contextualizar. Hoje, muitos possuem a visão da Bíblia de um livro fechado, já estabelecido. Porém, naquele momento as condições eram outras completamente diferentes. Os livros eram isolados (inclusive havia muitos outras obras que sequer entraram na Bíblia), não tinham o status de canônicos e ainda estavam em fase de produção. Isso facilitava em muito o revisionismo histórico.
Ainda nos dias atuais, mesmo com a civilização tendo avançado tanto, mesmo com o advento da ciência moderna, mesmo com a ampla capacidade de acesso à informação, a história continua sendo relida para fins políticos. E não estamos falando de uma distância histórica de que chega a mais de 1 milênio como a que havia entre a comunidade pós exílica e o período retratado nas histórias dos patriarcas. Estamos falando de poucos anos como nas releituras políticas sobre os eventos da ditadura militar brasileira ou de pouco mais de um século como nas releituras políticas que são feitas ao tentar transformar o zumbi de palmares em um escravista. Agora, se isso ocorre em pleno século XXI, imagine como não ocorria nos séculos AEC, onde religião e monarquia andavam de mãos dadas, onde o analfabetismo era imenso, não havia o conceito de história moderna e a população apenas consumia o que os líderes religiosos transmitiam...
A teologia sacerdotal mudou a religião judaica a ponto de termos dois cenários religiosos completamente diferentes no período pré-exílico e no período pós-exílico. Obviamente isso também influenciou bastante a teologia cristã, que não deixa de ser filha da pena sacerdotal.
Referências
LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. Paulus Editora; Edições Loyola. 2014.
SKA, Jean Louis. Introdução à Leitura do Pentateuco. Edições Loyola. 2003.
BROWN, Raymond Edward; FITZMYER, Joseph Augustine; MURPHY, Roland Edmund (org.). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo. Paulus Editora, 2018.
RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Profetas, Sacerdotes e Sábios: curso livre. 2020. notas de aula.
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FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia Desenterrada: A Nova Visão Arqueológica do Antigo Israel e das Origens dos Seus Textos Sagrados. Vozes. 2018.
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal EST. 1994.




