Introdução
Recomendo ao leitor que esteja vindo aqui pela primeira vez que leia também outras postagens do blog para se inteirar melhor sobre o assunto. Pois as peças vão se encaixando, facilitando a compreensão, de forma que uma coisa corrobora a outra. Vou deixar algumas indicações aqui que podem ser lidas nesta ordem:
1 - O Problema Sinótico: Neste texto comento sobre as origens dos evangelhos sinóticos.
2 - O Nome de Deus: Neste texto comento sobre o nome do deus bíblico, Yhwh.
3 - A Origem de Yhwh: Neste texto, comento sobre a origem de Yahweh. Você sabia que Israel nem sempre foi monoteísta? Você sabia que, inicialmente, Yahweh era visto como um deus marginal no panteão cananeu e que gradualmente foi se apropriando das caraterísticas de outros deuses como El e Baal até se tornar o deus único?
4 - Êxodo, Conquista da Terra e Origem de Israel – O que a Arqueologia diz sobre isso?: Neste texto explico por que o êxodo, como descrito na Bíblia, nunca ocorreu e comento sobre a origem do povo de Israel.
5 - Os Textos Bíblicos são Mais Políticos do que Você Pensa: Esse texto foi dividido em duas postagens: Parte 1 e Parte 2. Neste texto comento sobre como o texto bíblico foi escrito de forma política, citando alguns exemplos como a chegada na terra após o exílio e o uso dos das narrativas dos patriarcas e do êxodo, o debate monárquico e a ascensão sacerdortal ao poder. É um texto muito importante no blog.
Pois bem... indo de encontro ao tema: O nome “Satanás” vem do termo hebraico שָטָן - “satã”. Podemos traduzir o termo como “adversário”, “inimigo”, “obstrutor”. Sim, esqueça o substantivo próprio, o termo é muito mais utilizado como substantivo impróprio, adversário. Inicialmente, o personagem Satã não existia na teologia judaica. Foi uma figura que foi se desenvolvendo gradualmente até se aproximar do que é entendido hoje no cristianismo: o príncipe das trevas e personificação do mal, líder de um exército de demônios que se rebelou contra Deus e age de forma autônoma com desejo de impedir seus planos.
Contexto
OBS: Para ver informações adicionais sobre o conteúdo acima, leia o texto “A Origem de Yhwh”.
1 - A supressão da crença em demônios
OBS: Algumas traduções bíblicas, em alguns casos, omitem estes termos.
Com o estabelecimento de Yahweh como único deus, diferentemente das crenças populares, a “teologia oficial” suprimiu a presença de demônios. Agora, só existe Yahweh e ele próprio é responsável pelo bem e pelo mal. Veja alguns exemplos:
Isaías 45:6-7: “a fim de que saiba desde o nascente do sol até o poente que, fora de mim, não há ninguém: eu sou Yahweh e não há nenhum outro! Eu faço a paz e crio o mal, asseguro o bem-estar e crio a desgraça: sim eu, Yahweh, faço tudo isso.”
Jó 2:10: “Ele respondeu: ‘Falas como uma idiota. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?’ Apesar de tudo isso, Jó não cometeu pecado com seus lábios.”
Amós 3:6: “Se uma trombeta soa na cidade, não ficará a população apavorada? Se acontece uma desgraça na cidade, não foi Yahweh quem agiu?”
Citando outros exemplos, temos a crença popular de demônios no rio Jaboque que atacavam durante a noite e perdiam suas forças pela manhã que posteriormente foi transformada no texto da luta entre Yahweh e Jacó no mesmo rio Jaboque (Gn 32,23-33). Temos também o caso de Ex 4:24-26, onde a crença antiga de um demônio do deserto que atacava quem pousasse em seu território e que era afastado com o sangue é apropriada por Yahweh. Essa edição, por sinal ficou bem estranha diante do texto todo, veja, após Moisés receber o chamado de Yahweh, na sarça ardente, para voltar ao Egito, Moisés obedece e volta, porém... “Aconteceu que no caminho, numa hospedaria, Yahweh veio ao seu encontro e procurava fazê-lo morrer. Séfora tomou uma pedra aguda, cortou o prepúcio do seu filho, feriu-lhe os pés, e disse: ‘Tu és para mim um esposo de sangue’. Então, ele o deixou. Pois ela havia dito ‘esposo de sangue’, o que se aplica às circuncisões.”.
Como diz Nelson Killip no seu artigo “Os Poderes Demoníacos No Antigo Testamento” publicado na revista Estudos Bíblicos 74: “ao adotar antigas tradições , geralmente pré-israelitas, a teologia oficial suprime os demônios das mesmas transferindo os traços demoníacos a Javé”.
2 - O desenvolvimento de Satã na Bíblia Hebraica
Com o retorno do exílio, os judeus estavam sob o domínio do império persa. Este mesmo império que permite o retorno dos judeus do exílio e que financia a construção do seu templo. Com isso o judaísmo sofreu bastante influência da religião persa do período, o zoroastrismo. Nesta religião havia um forte dualismo com a presença dos deuses Ahura Mazda (bom) e Angra Mainyu (mal). Isso certamente criou um ambiente favorável para o início do desenvolvimento de outro personagem que possa ser responsabilizado pelo mal, o satã.
Podemos ver um exemplo bem explícito na história do recenseamento do povo realizado por Davi. O recenseamento é tido como um pecado no texto e, por fim, Yahweh envia um castigo após o ato. A questão é: quem incitou Davi a realizar o recenseamento? Para responder essa pergunta, recorramos ao texto bíblico. Essa história é contada em dois textos da Bíblia Hebraica: em 2 Sm 24, que é um texto mais antigo, e em 1 Cr 21, que é um texto escrito posteriormente.
2 Sm 24:1 – “A Ira de Yaweh se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles: ‘Vai’, disse ele, ‘e faze o recenseamento de Israel e Judá’.”
Segundo este texto quem incitou Davi a realizar o pecado do recenseamento foi Yahweh. Pensamento normal para o ambiente onde Yahweh é responsável pelo bem e pelo mal. Porém, com o desenvolvimento da teologia judaica, o texto muda.
1 Cr 21:1 – “Satã levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel.”
Segundo este texto, em um momento onde o personagem Satã já existe, é Satã quem induz Davi a realizar o recenseamento.
Satã não surge do nada como um ser maligno e autônomo, da forma que é conhecido hoje. Ele vai se desenvolvendo gradualmente. Como já dito, “satã” é um termo que significa “adversário”, “inimigo”, “obstrutor” e, originalmente, “satã” é uma atribuição dada a algum ser humano que exerce este papel. Em 1 Sm 29,4 Davi é considerado um שָטָן (satã), um adversário para os filisteus. Em 1 Rs 11,23 o inimigo de Salomão também é tratado como שָטָן (satã).
Essa atribuição começa a ser dada também a seres sobrenaturais que, por ordem ou permissão de Yahweh, obstruíam ou se opunham a planos e desejos humanos. Em Nm 22,22-35 vemos uma história onde a Balaão parte para ir a um local e este ato desperta a ira de Yahweh e o texto descreve que o “Anjo de Yahweh” se colocou no caminho como um שָטָן (satã). Cabe ressaltar que esse anjo é “Anjo de Yahweh”, ele age sob as ordens de Yahweh. Este anjo não é maligno, Deus o envia como um anjo da morte para cumprir uma missão específica, embora uma missão que os seres humanos talvez não apreciassem. Ou, como diz Neil Forsyth, em seu livro “The Old Enemy”, a respeito do satã “se o caminho é ruim, uma obstrução é boa.”.
Vemos também em Zc 3,1-6 a presença de um ser sobrenatural que recebe a designação de שָטָן (satã). Mas também não se trata de um ser autônomo, oposto a Yahweh. Pelo contrário, faz parte da corte celeste de Yahweh como um promotor, acusando o réu. Cabe ressaltar que essa “corte” faz parte do imaginário das religiões do Antigo Oriente Próximo. Assim como Yahweh possui a sua corte, El e outros deuses também possuíam as suas cortes celestes.
Falando da corte de Yahweh, temos o relato da morte do rei de Israel, Acabe, em 1 Rs 22. Neste texto, Acabe e Josafá, rei de Judá, planejam guerrear contra o rei de Aram. Josafá pede a Acabe que consulte os profetas de Yahweh para saber se a campanha será bem sucedida. Acabe reúne quatrocentos profetas, que no texto são tidos como profetas falsos, e estes dizem que Yahweh dará a vitória a Acabe. Josafá questiona se não há mais outro profeta que possa ser consultado. Acabe diz que há outro profeta, Miqueias, que no texto é tido como profeta verdadeiro. Porém, Acabe diz que não gosta de consultar este profeta, pois ele sempre prediz o mal contra Acabe. Porém, após a insistência de Josafá, Acabe acaba consultando Miquéias. Miquéias responde com uma visão que tivera da corte de Yahweh: “Eu vi Yahweh assentado sobre o seu trono; todo o exército do céu estava adiante dele, à sua direita e à sua esquerda. Yahweh perguntou ‘Quem enganará Acabe, para que ele suba contra Ramot de Galaad e lá pereça?’ Este dizia uma coisa e aquele outra. Então o Espírito se aproximou e se colocou diante de Yahweh: ‘sou eu que o enganarei’, disse ele. Yahweh lhe perguntou: ‘E de que modo?’ Respondeu: ‘Partirei e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus profetas.’ Yahweh disse: ‘Tu o enganarás, serás bem-sucedido. Vai e faze assim.’ Eis, pois, que Yahweh infundiu um espírito de mentira na boca de todos esses teus profetas, mas Yahweh pronunciou contra ti a desgraça.” (vv. 19-23). Por fim, Acabe escuta os falsos profetas, o espírito de mentira enviado por Yahweh cumpre bem o seu papel, e Acabe morre na guerra.
OBS: Sim, Yahweh mentiu de forma terceirizada.
Vemos neste texto acima, que o espírito que sai da corte de Yahweh, enviado pelo próprio Yahweh, aqui já é um espírito de mentira.
Em 1 Sm 16,14-23, um espírito mal enviado por Yahweh possuía Saul e era expulso com o toque da harpa de Davi. Mas este espírito mal não tem autonomia e nem age contra Yahweh. É enviado justamente por Yahweh.
No texto de Jó 1-2, ocorre o mesmo. Na mesma corte divina, “no dia em que os filhos de Deus vieram se apresentar a Yahweh, entre eles veio também o שָטָן (satã).” O termo “satã” aqui é precedido por um artigo indicando que não se trata de um nome próprio, mas sim “o adversário” (o termo só pode ser interpretado como já sendo um nome próprio em 1 Cr 21,1). Basicamente, o texto diz que entre os “filhos de Deus”, “ben’elohim”, termo utilizado para designar anjos ou seres divinos, veio também o “filho de Deus” que exerce a função de adversário. Como diz Elaine Pagels em seu livro “As Origens de Satanás: Um Estudo Sobre o Poder que as Forças Irracionais Exercem na Sociedade Moderna”: “Quando o Senhor lhe perguntou de onde vinha, ele respondeu: ‘De rodear a terra e passear por ela.’ Neste ponto, o cronista explora a similaridade entre o som das palavras hebraicas ‘satan’ e ‘shût’, que significa rodear, sugerindo que o papel especial do satanás na corte celestial é o de uma espécie de agente ambulante de espionagem, tais como aqueles que muitos judeus da época teriam conhecido – e detestado – como membros do refinado sistema de polícia secreta e espiões do rei da Pérsia. Tidos como ‘o olho do rei’ ou o ‘ouvido do rei’, esses agentes vagueavam pelo império à procura de sinais de deslealdade entre o povo.”. Satã, continua servo sob o comando de Yahweh, tanto que o próprio autor diz, sob as palavras de Jó que, da mesma forma que Yahweh lhe concedeu bens anteriormente, agora estava lhe concedendo o mal: “Ele respondeu: ‘Falas como uma idiota. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?’ Apesar de tudo isso, Jó não cometeu pecado com seus lábios.” (2,1).
Como diz Kenner Terra em seu livro “Os Anjos que Caíram do Céu: O Livro de Enoque e o Demoníaco no Mundo Judaico Cristão”: “Não temos na Bíblia hebraica a presença de uma personificação do mal ou um termo para designar um demônio com autonomia, ou um líder de hostes malignas, ou muito menos uma visão dualista, onde esses seres são inimigos de Deus, ou desejam impedir seus planos e projetos. Concordo com Schiavo que ‘a figura independente do mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma grande mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular, do ritualismo apotropaico oficial, do simbolismo poético’.”
Embora, objetivando a apropriação das atitudes más de Yahweh, tenha tido o início do desenvolvimento da figura do Satã, ele ainda estava sob as ordens de Yahweh. Era um obediente servo. Por fim, era apenas instrumento do próprio Yahweh. Como ainda diz Kenner Terra no mesmo livro citado anteriormente: “O diabo, na Bíblia Hebraica, é diabo de Deus.”. Enquanto o Satã não fosse autônomo, rebelde e contrário aos planos de Yahweh, ainda não estaria “resolvido” o problema da maldade.
Se o objetivo é conhecer sobre o desenvolvimento do Satã exclusivamente na Bíblia Hebraica, este processo para por aqui. Porém, para chegar no Satã que está desenvolvido no Novo Testamento, podemos acompanhar o seu desenvolvimento através de outras fontes que os judeus produziram na época e cujas quais o cristianismo bebeu bastante.
3 - Do Satã da Bíblia Hebraica ao Satã do Novo Testamento - sobre o desenvolvimento do demoníaco no judaísmo e cristianismo
3.1 - O Mito dos Vigilantes
“Quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias, nasceram-lhes filhas bonitas e graciosas. E os vigilantes, filhos do céu, ao verem-nas, as desejaram e disseram entre si: ‘Venham, escolhamos para serem nossas esposas as filhas dos homens, e tenhamos filhos!’ Disse-lhes então o seu chefe Semiaza: ‘Eu receio que vós não queirais realizar isso, deixando-me no dever de pagar sozinho o castigo de um grande pecado’. Eles responderam-lhe e disseram: ‘Nós todos estamos dispostos a fazer um juramento, comprometendo-nos a uma maldição comum mas não abrir mão do plano, e assim executá-lo’. Então, eles juraram conjuntamente, obrigando-se a maldições que a todos atingiram.” (1 Enoque 6, 1-5)
Os vigilantes também trouxeram ensinamentos para os homens. Azazel, um deles, ensinou os a metalurgia aos homens e produção de armas. Ele também ensinou as mulheres a cosmética, a como pintar os olhos, embelezar as sobrancelhas e “entre as pedras preciosas escolher as mais caras e preciosas”. Outros vigilantes ensinaram a magia, a astrologia, dentre outras coisas.
OBS: Vários pesquisadores entendem que inicialmente havia duas tradições separadas (onde em uma o líder dos anjos era Semiaza e na outra o líder dos anjos era Azazel) e que foram costuradas posteriormente (de forma parecida com a história do Dilúvio em Gênesis) ficando na forma que se encontra no Livro dos Vigilantes.
Das relações sexuais dos vigilantes com as mulheres, foram criados os gigantes. Estes seres híbridos comeram toda a alimentação da terra e depois os próprios seres humanos. Por conta disso, a humanidade clamou e as suas vozes chegaram aos céus. Os anjos Miguel, Sariel, Rafael e Gabriel levaram o clamor dos homens diante de Deus. Deus decide enviar o dilúvio como julgamento sobre o mundo e pede a Sariel para avisar a Noé. Deus também envia Rafael para prender Azazel no deserto, onde ficaria até o julgamento final. Gabriel é encarregado de eliminar os gigantes, colocando-os uns contra os outros para que se matem. E Miguel deveria prender Semiaza e os anjos rebeldes nos vales profundos da terra, por gerações até que fossem lançados no “fogo eterno” (Já ouviu falar nessa expressão? Pois é as coisas vão se desenvolvendo assim... o texto também fala sobre um “mar de fogo” - imagino que você também já tenha ouvido a expressão “lago de fogo” - assim como nos Oráculos Sibilinos, em uma releitura dessa história dos Vigilantes, é dito que eles seriam lançados no “Geena”, termo muito utilizado nos evangelhos e que foi traduzido por “inferno” em muitas bíblias).
Em seguida, os Vigilantes se comunicam com Enoque pedindo que ele interceda por eles perante Deus. Porém, Deus o envia ao local onde os Vigilantes estão aprisionados para anunciar-lhes a sua condenação.
Após a morte dos gigantes, seus espíritos são libertados e transformam-se em espíritos malignos.
“Agora, os gigantes, nascidos da união de espírito com carne serão chamados de espíritos malignos na terra e sobre a terra terão a sua morada. Espíritos malignos se originaram de sua carne, porque nos céus foram criados, dos Santos Vigilantes foi sua origem e primeira criação. Maus espíritos serão sobre a terra e de espíritos malignos serão chamados... e os espíritos dos gigantes oprimem, corrompem, atacam, pelejam, promovem a destruição, comem e não se fartam, bebem e não matam a sede. Esses espíritos atacarão homens e mulheres, pois desses procederam... onde quer que haja sido os espíritos do seu corpo, pereça a sua carne até o dia da grande consumação do juízo com a qual o universo perecerá com os Vigilantes e os ímpios.” (1 Enoque 15,8-16,1).
Em seguida, Enoque é levado em algumas viagens por locais como os confins da terra, as câmaras de todos os ventos, o local onde estão os espíritos dos mortos, o paraíso (onde vê as árvores do conhecimento do bem e do mal e a árvore da vida), etc e o livro termina com uma doxologia.
3.2 - O que temos até aqui...
Cabe ressaltar também que o texto diz várias vezes que os vigilantes ao descerem do céu e terem relações sexuais com as mulheres humanas se tornaram impuros (9,8; 15,3; 15,4; 19,1) o que se aplica aos nascidos dessa relação (os híbridos gigantes) e aos seus espíritos. Além disso, o texto diz que os gigantes comiam de tudo e também bebiam sangue, o que também os torna impuros segundo a lei mosaica, que seguia rígidas restrições alimentares e proibia o consumo de sangue. Essa relação com a impureza é importante, pois nos evangelhos os demônios são chamados de “espíritos imundos”. Nos quatro relatos de exorcismo em Marcos (1, 23-28; 5,1-20; 7,24-30; 9,14-27), o primeiro evangelho a ser escrito e que serviu de fonte para Mateus e Lucas (veja mais sobre isso aqui), é utilizado o termo πνεύμα ακάθαρτον (pneuma akátharton - espírito imundo) para designar os espíritos que possuíam as pessoas.
Também cabe ressaltar que os espíritos dos gigantes são fortes e violentos. Também em Marcos, os espíritos imundos são também descritos com relações a essas características: se agitam “com violência”, quebram grilhões e espedaçam correntes, ferem os corpos das pessoas possuídas jogando-os ao chão, cortando-os com pedras, queimando-os com fogo... (Mc 1, 26; 5,2-5; 9,18; 20; 22; 26).
Até aqui, o que temos em relação aos espíritos que saíram dos corpos dos gigantes:
• São chamados de espíritos malignos.
• Vagam sobre a terra.
• Perecerão no dia do juízo.
• Afligem os homens.
• São impuros.
• São fortes.
• São violentos.
Esses seres terão novas características mais à frente. Mas vale mencionar também que no mito dos vigilantes já há uma ligação entre anjos caídos (vigilantes) e a origem dos demônios (espíritos dos gigantes).
3.3 - Mito dos Vigilantes e a bíblia hebraica
“Quando os filhos dos homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram... Ora, naquele tempo e também depois, quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e estas lhe davam filhos, os gigantes habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.”
Há discussões sobre essa relação entre o mito dos vigilantes e o texto de Gênesis. O texto que se encontra no Livro dos Vigilantes não surgiu do nada. Uma tradição foi desenvolvida gradualmente até chegarmos à forma que se encontra nesse livro enoquita. Alguns pesquisadores, como Milik (em 1970), Paolo Sacchi (em 1990) e P.R. Davies (em 1993) defendem que a tradição enoquita seria anterior à Genesis e influenciou o seu texto. Outros, como P.S. Alexandre, e Kenner Terra (em 2014) defendem que Gênesis ou uma versão anterior do texto de Gênesis teria influenciado a narrativa enoquita. Já H.S. Kvanvig (em 2004) a relação é mais complexa onde o que se conhece em 1 Enoque é um antigo estágio da tradição de Gênesis, mas os escribas de Gênesis também conheciam uma tradição enoquita em uma versão anterior à que conhecemos.
O que certamente há é uma relação entre ambos os textos.
Em Daniel 4, Nabucodonosor tem um sonho onde vê um Vigilante, que é um “santo descido do céu”.
“... quando vi um Vigilante, um santo que descia do céu...” (4,10)
“Quanto ao fato do rei ter visto um Vigilante, um santo, descido do céu...” (4, 20)
Não há relação entre o mito dos vigilantes ou sequer alguma referência demoníaca nos textos de Isaías 14, 8-21 e Ez 28, 2-12. Estes textos são destinados aos reis da Babilônia e de Tiro, e utilizam algumas metáforas (com influências de mitologias ugaríticas e gregas) assim como outros textos semelhantes destinados a outros reis nos profetas. A leitura destes textos como tendo alguma referência ao diabo é interpretação dos pais da igreja que se difundiu entre o século II e V EC. Com a tradução do texto de Isaías para o Latim por Jerônimo a expressão hebraica הֵילֵל (“estrela da manhã”) foi traduzida pela palavra latina lucifer, que posteriormente acabou virando um nome próprio. Acho engraçado que em 2 Pe 1:19, temos também a palavra latina lucifer, mas onde o autor deseja que “a estrela da manhã [lucifer] surja em vossos corações” ninguém ousa a dizer que nesse caso o termo lucifer se refere ao diabo.
3.4 - Desenvolvendo mais o demoníaco no judaísmo...
Em Jubileus, que é datado no século II AEC, no capítulo 10, temos os “demônios impuros” que foram atormentar os netos de Noé, levando-os à insensatez para destruí-los. Os filhos de Noé recorrem a ele, que ora à Yahweh, lembrando de quando foi salvo com sua família do dilúvio não os deixando perecer como os filhos da perdição. Na oração, ele pede “não deixe os maus espíritos dominá-los, para que não os destrua [seus netos] da terra” (10,3). Em seguida, ele identifica os demônios impuros como os filhos dos vigilantes: “E você sabe que seus Vigilantes, os pais desses espíritos, fizeram em meus dias e também aqueles espíritos que são livres”. Em seguida, Yahweh ensina a Noé como curar as ações dos demônios com ervas (10,12).
Já vemos aqui os demônios sendo descritos como possuindo os netos de Noé e na oração de Noé e nos ensinamentos apotropaicos com as ervas para se livrar dos demônios já vemos os exorcismos.
Mas não para por aí. Em Jubileus, há um líder dos demônios. Após a oração de Noé, quando Yahweh decide mandar prender os espíritos malignos, o líder dos demônios, chamado Mastema, se pronuncia.
“Senhor, Criador, deixe alguns deles comigo, e deixe-os obedecer minha voz. E deixe-os fazer tudo o que eu digo para eles, porque se não deixar alguns para mim não serei capaz de exercer a autoridade da minha vontade entre os filhos dos homens, porque eles são destinados a corromper e a desviar antes de meu julgamento, porque o mal dos filhos dos homens é grande.” (10,8-9)
Em Jubileus, já temos a presença de um príncipe dos demônios (ainda que de certa forma submisso a Yahweh) e já vemos os demônios organizados em uma espécie de exército.
Outro texto que também revela um pouco sobre o desenvolvimento do demoníaco é o Tratado dos Dois Espíritos. Neste livro, há um forte dualismo. Há anjos de luz e anjos das trevas e uma luta interna sob essas forças. Os anjos das trevas buscam levar os homens ao pecado.
Segundo Garcia Martinez (2007), “Se os Vigilantes são a origem do mal na terra, sua própria capacidade de fazer o mal precisa ser explicada. A solução dada para o problema para o autor do Tratado é muito mais radical que o dado no livro dos Vigilantes. Para ele, não houve rebelião no céu. Os Vigilantes são parte e estoque dos maus espíritos, o exército do príncipe das Trevas. Eles são criados como espíritos maus diretamente por Deus.”
Vemos aqui que já se vai mais além. Os próprios vigilantes já são interpretados como espíritos malignos. Na obra do Documento de Damasco, apesar de não ser tão radical quanto o Tratado, chama os Vigilantes de “caídos” (CD-A Col II:14-21).
Em paralelo à Mastema, temos outra figura que também aparece como líder dos demônios: Belial. Em 11QMelquisedec que pode ser datado do século I AEC, temos dois exércitos opostos, o exército angelical de Melquisedec e o exército demoníaco de Belial. Nesse texto, Melquisedec e seu lote lutarão contra Belial e seu lote no futuro escatológico e a destruição do poder do mal inaugurará a salvação. Com base na relação entre 1QM XIII 9-12 e 1QM XVII 5-9 com 11QMelquisedec, Melquisedec é identificado como Miguel, o que já se deixa uma imagem bem parecida com Apocalipse 12, onde Miguel luta contra o Dragão, identificado como o diabo ou Satanás (12, 9) e após a vitória de Miguel é declarada a salvação (12,10) (ver também Daniel 12,1). Aproveitando o gancho da comparação com Apocalipse, lembrando que, em 1 Enoque, como já citado, Miguel fica encarregado de prender Semiaza e os anjos rebeldes nos vales profundos da terra, por gerações, até que fossem lançados no “fogo eterno”... em Apopalipse 20, um anjo prende Satanás no abismo por mil anos e depois ele é lançado no lago de fogo. Veremos alguns exemplos da influência de 1 Enoque no Novo Testamento mais adiante.
Na figura de Belial, já pode ser vista uma insubmissão à Yahweh. No Testamento dos Doze Patriarcas, ele é oposição a Deus (Test. Dan 1,7; Test de Naf. 3,1), é o “Príncipe do mal” e o “Espírito das trevas” (Test. Levi 19,1), os homens maus são dominados por seus espíritos (Test. De Ash 1,8; Test. De Levi 3,3 Test. De José 7,4) e será vencido nos últimos dias pelo messias (Test. De Judá 25,3; Test. Ben. 3.8).
A questão da possessão é algo que vai se desenvolvendo também. Se já em 1 Enoque 15,12, temos uma brecha para esse questão e em Jubileus já há o assédio dos espíritos dos demônios, espíritos dos gigantes aos netos de Noé, levando-os à insensatez, essa questão vai surgindo novamente em outros textos em Qumran. Em 4Q510 1.6, é dito que os maus espíritos desviam a mente dos indivíduos. Em 1QS 4 20-21, há um exorcismo onde se o processo vai “arrancando todo o espírito de injustiça da parte mais interna da sua carne”. Em 11Q5 19 pede-se a Yahweh para purifica-lo da sua iniquidade, para não permitir que se tropece em transgressão e para não deixar que o espírito impuro tome posse dos seus ossos. Em 4Q444 encontramos um texto com função apotropaica, onde é dito que os espíritos que se deseja afastar são denominados como “espíritos de impureza” e “espíritos dos bastardos” (bem provável menção aos gigantes). E cada vez mais vão aparecendo descrições de possessão (onde os espíritos tomam a mente ou o corpo dos indivíduos) e exorcismos nos textos.
Como diz Kenner Terra em seu artigo “O Dualismo em Qumran: Mito dos Vigilantes e o Imaginário Persa” contido no livro “Israel no Período Persa: A (Re)construção (Teológica) da Comunidade Judaíta e Outros Ensaios”: “Outros textos em Qumran aparecem com características dualistas, com a imagem de um líder maligno, em especial Belial/Beliar, contra um grupo de seres da luz. Esse líder está provavelmente em paralelo com Mastema. Em 1QS I 16-2.8, Belial é personificado como líder dos pecadores; 1 QM XIV 9 fala do império de Belial; 4Q390 2 1 4 fala da dominação de Belial. CD 4.12-15; 5.8; 1QM I 4-5;13-16 fala de uma escatológica guerra contra o exército de Belial; 4Q386 I 2.3, 1QM VIII 4-12 cita Belial como Mastema e todo grupo dos espíritos de seu lote como pecadores. Em 11Q11 IV 1.12, Belial é identificado como Satã, como acontece com Mastema em Jubileus 10.”
Por fim, com a identificação de Belial e Mastema como Satã, Satã absorve todas as caraterísticas destes outros personagens, trazendo uma nova carga sobre o personagem e possibilitando uma releitura da Bíblia Hebraica, nas passagens que mencionam Satã, sob essa nova perspectiva. Satã agora é o príncipe das trevas e dos demônios, oposto a Deus, com um exército de demônios e será vencido no final dos tempos.
Vale ser mencionado também que com a tradução da Bíblia Hebraica para o grego (LXX), onde o termo Satã, foi traduzido pelo termo grego diabolos, veio consigo uma visão grega que também colaborou para essa mudança de visão do personagem.
3.5 - Partindo para o Novo Testamento e o cristianismo...
No livro dos Vigilantes, em 1 Enoque, temos a origem dos demônios. Era de se esperar que esse livro refletisse também no Novo Testamento. E refletiu. Vou citar alguns exemplos abaixo.
Judas depende de alguns livros que hoje são considerados apócrifos, um deles é a Assunção de Moisés, que reflete uma disputa entre Miguel e o diabo pelo corpo de Moisés. Judas cita isso no versículo 9. Mas, vamos a Enoque:
Em Judas 6 é dito: “E quanto aos anjos que não conservaram sua primazia, mas abandonaram a sua morada, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o julgamento do grande Dia.”
Qual é a obra judaica que fala sobre anjos que abandonaram a sua morada e que foram presos em cadeias, sob as trevas, até o dia do julgamento de Yahweh? O livro dos Vigilantes, em 1 Enoque. Vemos aqui o reflexo desse imaginário.
Em Judas 13b-15 é dito: “... astros errantes, aos quais está reservada a escuridão das trevas para a eternidade. A respeitos deles profetizou Enoque, o sétimo dos patriarcas a contar de Adão, quando disse ‘Eis que o Senhor veio com suas santas milícias exercer o julgamento sobre todos os homens e arguir todos os ímpios de todas as obras de impiedade que praticaram e de todas as palavras duras que proferiram contra ele os pecadores ímpios.’”
Em 1 Enoque 18,15s e 21,5s os Vigilantes são chamados de estrelas que foram aprisionadas até o tempo da consumação de suas culpas. Judas fala deles em 13b. Em seguida, cita explicitamente Enoque e menciona uma profecia contida em 1 Enoque 1,9.
Em 1 Pedro 3, 18-20, é afirmado que Jesus “foi pregar aos espíritos em prisão, aos rebeldes de outrora, quando se prolongava a paciência de Deus nos dias em que Noé construía a arca, na qual poucos, isto é, oito pessoas foram salvas pela água.”
No livros dos Vigilantes, em 1 Enoque, especificamente nos tempos do dilúvio, os Vigilantes foram espíritos rebeldes que foram presos. Enoque vai até eles e anuncia a sua condenação. Vemos aqui a figura de Jesus se apropriando da figura de Enoque. Aqui é Jesus que vai até esses espíritos anunciar (pregar significa anunciar) a sua condenação.
Séculos depois, Agostinho, vai reinterpretar isso dizendo que Jesus foi pregar a salvação às almas humanas que morreram durante o dilúvio. Essa interpretação se popularizou na idade média e é reproduzida até hoje em muitas igrejas.
2 Pedro contém quase todo o conteúdo de Judas na sua epístola, sobretudo à partir do capítulo 2. Em 2,4, é dito “pois Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos tenebrosos do Tártaro, onde estão guardados à espera do julgamento”. É a mesma questão vista acima em relação a Judas 6. Mas Pedro introduz o “Tártaro”, mostrando uma influência grega, fazendo uma possível relação dos Vigilantes com os Titãs (que na mitologia grega foram presos no Tártaro).
Eu não desenvolvi aqui nesse texto (pois tive que cortar várias coisas para não se estender ainda mais) a questão dos ensinamentos proibidos ensinados pelos Vigilantes aos humanos. Dentro desse assunto, estaria questão do ensino impróprio de Azazel às mulheres sobre a ornamentação. Essa questão gerou uma visão negativa dos enfeites e adornos femininos. Consequentemente, vemos isso refletido em 1 Pe 3, 3-4 e em 1 Tm 2,9-11. Além disso, vemos em 1 Co 11,10, Paulo, ao tratar do véu, diz “É por isso que a mulher deve disciplinar a seu cabelo, por causa dos anjos”. Soltar os cabelos na tradição judaica e romana era algo extremamente libidinoso (para saber mais sobre isso, veja o “Os Anjos que Caíram do Céu: O Livro de Enoque e o Demoníaco no Mundo Judaico Cristão” do Kenner Terra, nas páginas 122 a 124) e Paulo, sabendo que as mulheres já atraíram os anjos uma vez, considera que deve-se evitar que isso possa ocorrer novamente.
Esses são alguns exemplos nas obras que posteriormente foram consideradas canônicas. Também teríamos vários exemplos da influencia de 1 Enoque em outras obras cristãs escritas nos primeiros três ou quatro séculos. Algumas delas tratam 1 Enoque como “escritura” ou como “profecia”. Alguns exemplos são a Epístola de Barnabé, Justino Mártir (Apologia 5, 1-4, Segunda Apologia 5), Atenágoras (Súplicas Pelos Cristãos 24-26), Irineu (Contras as Heresias 1,10,1; 1,15,6; 4,16,2; 4,36,4, Clemente de Alexandria (O Instrutor 3,2,14; Eclogae Propheticae 53,5, Stromata III 7,59), dentre várias outras.
Sendo assim, sabendo de como os cristãos consumiam a literatura de 1 Enoque e de outros textos que hoje são considerados apócrifos, sabendo que nasceram do judaísmo herdando o imaginário judeu (e só se separaram do judaísmo posteriormente), no momento em que são escritos os evangelhos podemos ter boas pistas de que os espíritos impuros que vemos ali eram vistos como os espíritos dos gigantes descritos no mito dos Vigilantes.
Cabe ressaltar que nesse momento, como já citado, me parece que já estava em andamento uma certa mistura do demoníaco entre os espíritos dos gigantes e os próprios Vigilantes, os anjos caídos (como vimos no Tratado dos Dois Espíritos, que já coloca a origem do mau nos próprios Vigilantes). Em 2 Enoque, que pode ser datado como concluído no final do 1 século EC, o líder dos Vigilantes (que nesse texto são chamados de Grigori), no lugar de Semiasa ou Azazel, é chamado de “Satanael”. No Livro das Parábolas, que posteriormente foi incluído na obra de 1 Enoque, mas que é datado entre o século 1 AEC e o século IV EC, é dito que, no grande Dia os Vigilantes serão jogados na fornalha ardente “por que quiseram servir a Satã e seduziram os moradores da terra”. Posteriormente, isso pode ter influenciado na tradição que os cristãos vão desenvolver, séculos depois, sobre o Satã ter sido um anjo, gerando uma releitura os textos de Isaías 14, 8-21 e Ez 28, 2-12, como já citado (OBS: isso é um palpite que eu estou dando, não li nenhum pesquisador da área fazendo essa relação).
Conclusão
Referências
(Esse livro foi a maior fonte de informações para a postagem. Muito do que eu disse foi um resumo de algumas partes do livro. Para quem quiser um aprofundamento sobre o tema e de boa parte das informações da postagem, sugiro, primeiramente, esse livro.)
TERRA, Kenner. O Dualismo em Qumran: Mito dos Vigilantes e o Imaginário Persa. In: LELLIS, Nelson (org.). “Israel no Período Persa: A (Re)construção (Teológica) da Comunidade Judaíta e Outros Ensaios”. Edições Loyola. 2018.
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: Um Estudo Sobre o Poder que as Forças Irracionais Exercem na Sociedade Moderna. Ediouro. 1996.
DATTLER, Frederico. Diabo e Inferno na Bíblia e na Literatura Universal. Ed. Paulinas. 1977.





