sábado, 25 de janeiro de 2020

A ORIGEM DE YHWH


1 - Introdução


Como disse Reinaldo José Lopes, as coisas seriam muito mais simples (ou talvez muito mais chatas, para quem gosta de um desafio) se a Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) fosse escrito como um relato jornalístico do começo ao fim. Mas não é isso o que acontece. A Bíblia Hebraica não é um livro de história, nem foi escrito de forma cronológica, os livros contidos nela, de forma geral, não foram escritos por um único autor e nem foram escritos de uma vez só. A Bíblia Hebraica é um livro religioso, e até mesmo político, que está mais para uma “colcha de retalhos”, onde se adiciona um novo “remendo” de acordo a demanda da sociedade da época (Sitz im Leben). Assim, textos mais antigos são editados por redatores, textos novos são criados e compilados a textos e tradições antigas e (porque não?) textos também são excluídos. Em meio a isso, o trabalho árduo é tentar extrair destes textos alguns “traços de memória” de tradições mais antigas que sobreviveram em meio aos textos que se apresentam na forma atual a nós. Isso é feito sob muita pesquisa científica através de ferramentas como a crítica literária, crítica textual, análises filológicas, análises diacrônicas, etc. Claro que tudo isso se junta a evidências arqueológicas, epigráficas, iconográficas, etc, obviamente considerando um contexto geográfico como um todo incluindo inscrições, documentos e anais egípcios, assírios, babilônicos e etc. Ou seja, filtrar a coisa dá muito trabalho.

Com isso, descobrimos que a origem de Yhwh pode ser muito diferente do que se pensa por aí. Preparado? Vamos lá!

2 - Israel e Politeísmo


O povo de Israel não teve Yhwh como seu deus desde o princípio. Inicialmente, este povo tinha outros deuses. Já se nota isso pelo próprio nome “Israel” (יִשְׂ רָ אֵ ל ) que se trata de um nome teofórico, que faz referência ao Deus El (אֵ ל). El é um Deus cananeu, mais especificamente o chefe do panteão cananeu. Além do próprio nome do povo, diversos nomes de cidades estão ligadas a diversos deuses, como Anat (Anatoth, Jr 1:1-2: o lugar de origem do profeta Jeremias), Baal (Baal-Peracim, 2 Sm 5: o lugar onde Davi vendeu os filisteus) Dagon (Bet-Dagon, Js 15:41: localidade situada no território de Judá), o já citado El (Beth-el, um dos maiores santuários de Israel), Shalimu (Jerusalém), Shamash (Bet-Sames, 1 Sm 6: lugar dedicado ao deus solar, próximo de Jerusalém, servindo de entreposto para a arca da aliança), dentre outras (isso para não falar de nomes de personagens bíblicos israelitas/judaítas com nomes teofóricos referente a diversos deuses). Além disso, o próprio nome Yhwh pode ser uma referência a um epíteto para o grande chefe El, pois um de seus epítetos era “El Du Yahwi Saba'ôt”, ou seja, "El, aquele que cria os exércitos". Epíteto esse que, provavelmente, gerou depois o epíteto de Yhwh “Yhwh Seba’ôt”, que é atestado 284 vezes na Bíblia Hebraica (que é traduzido em muitas bíblias em português como “Senhor dos Exércitos”).

2.1 - El na Bíblia


Falando de El e seus epítetos, o nome El, sozinho ou sob diversos epítetos, é bastante atestado na Bíblia Hebraica, com mais frequência nos livros de Gênesis a Reis (conjunto de livros que muitas vezes são classificados como Eneateuco) onde corresponde a 1,06 de cada 1000 palavras. Vamos ver alguns exemplos:

 El – Em Gênesis 33, Jacó erige um altar em Betel e o chama de claramente de “El, Deus de Israel” (Gn 33:22).

 El Elion (El Altíssimo) – Em Gênesis 14:18-22, Melquisedec, rei de Salém e sacerdote de El Elion, abençoa a Abraão em nome de El Elion.

 El Roi (El da Visão ou El Me Vê) – Em Gênesis 16, Agar, que é mãe de Isma“el”, deu esse nome ao deus que se revelou a ela por meio de um anjo (Gn 16:13).

 El Olam (El de Sempre ou El de Eternidade) – Em Gênesis 21:22-32, Abraão planta uma tamargueira em Bersabeia e invocou o nome de El Olam.

 El Shaddai (termo de tradução discutida, mas uma das hipóteses seria algo como El da Montanha) – Em Gênesis 17:1, Yhwh apareceu a Abraão e se apresentou como El Shaddai.

OBS: Muitas vezes as traduções escondem esses termos.


Estatueta de El encontrada em Meguido, datada entre os séculos XIV-XIII a.C

3 - Chegada de Yhwh no Panteão


O povo de Israel, inicialmente, não cultuava a Yhwh. Entretanto, com o passar do tempo, Yhwh surgiu no panteão. Alguns textos bíblicos podem manter alguns traços de memória de tradições antigas relacionadas à origem de Yhwh:

Deuteronômio 33:2 – Ele disse: Yahweh veio do Sinai, alvoreceu para eles de Seir, resplandeceu do monte Farã. Chegou a Meribá de Cades, desde o sul até as encostas.

Juízes 5:4-5 – Yahweh, quando saístes de Seir, quando avançastes nas planícies de Edom, a terra tremeu, troaram os céus, as nuvens desfizeram-se em água. Os montes deslizaram na presença de Yahweh, o do Sinai, diante de Yahweh, o Deus de Israel.

OBS: esse texto de Juízes 5, é considerado por muitos um dos textos mais antigos da Bíblia Hebraica.

Salmo 68:8-9 e 18 – Ó Deus, quando saíste à frente de teu povo, avançando pelo deserto, a terra tremeu, e até o céu dissolveu-se na presença de Deus, na presença de Deus, o Deus de Israel. Os carros de Deus são milhares de miríades; o Senhor veio do Sinai para o santuário.

Habacuc 3:3 e 10a – Eloá vem de Temã, e Santo, do monte Farã. A sua majestade cobre os céus, e a terra está cheia de seu louvor. Ao ver-te as montanhas tremem.

Sem me alongar muito na explicação sobre estes textos (no final deixo uma indicação de literatura para quem quiser se aprofundar mais), de forma resumida, todas essas localidades apontam para a região do Sul.

OBS 1: O texto de Juízes 5 é bem próximo do texto do Salmo 68. Ainda mais, considerando que o texto do Salmo 68 faz parte do Saltério Eloísta (salmos 42-83), um grupo de salmos onde posteriormente se substituiu, no texto, o nome Yhwh por Elohim (traduzido por “Deus”). Considerando que, inicialmente, havia um “Yahweh” no lugar de “Deus” ali, no começo da citação do texto retirado do salmo, o texto fica ainda mais semelhante.

OBS 2: A localização do monte Sinai, que hoje é tradicionalmente atribuída à Peninsula do Sinai, se baseia em um tradição cristã do século IV, e possivelmente não representa o Sinai mítico das tradições antigas.

Como estava dizendo, bem resumidamente, estas citações podem direcionar a origem de Yhwh como vindo do Sul. Alguns, com diversos argumentos, vão especificar essa localidade em Edom. Existem também outras hipóteses como, por exemplo, a madiano-quenita, assim como a de Ebla (devido a algumas tábuas de argila encontradas no local), a de Ugarit (devido a um texto encontrado, onde há uma banquete de El e seu filho, cujo o nome, pode-se traduzir por uma forma abreviada de Yhwh), a de Mari (por conta de outros documentos arqueológicos) e também do Egito. No Egito, graças à arqueologia, é onde temos a referência textual mais antiga ao nome de Yhwh, em uma lista de Amenófis III de Soleb, no Sudão (por volta de 1370 a.C.). Nessa lista, consta a expressão “terra dos Shasu – Yhw(h)” ou “Yhw(h) na terra dos Shasu”. O termo shasu é referente a um grupo nômade que vivia por volta das regiões do sul de Israel. Existe até mesmo a possibilidade de um grupo desses Shasu ou mesmo dos Hapiru (outro grupo de nômades - alguns defendem que do termo “hapiru” ou “habiru” possa ter gerado o termo “hebreu”) terem fugido do Egito, tendo, no caminho, contato com Madiã ou o Sinai e, com isso, terem trazido esse culto de Yhwh após, chegando pelo sul, terem se encontrado e se instalado com os israelitas, possivelmente, gerando uma tradição do Êxodo mais tarde.

Mas como foi dito, não vou me alongar a essas questões. Pois existem argumentos muito extensos sobre essa origem da divindade Yhwh e não pretendo estender mais ainda o texto. O fato é que, independentemente da origem, em um certo momento, Yhwh se encontra instalado no panteão de Israel e ainda subordinado ao deus El.

4 - Yhwh Como Integrante do Panteão e Subordinado a El


Um texto que pode ter um traço de memória deste momento é o texto de Deuteronômio 32:8-9:

"Quando Elion (epíteto de El, já mencionado acima, que refere-se ao título de Altíssimo) repartia as nações, quando espalhava os filhos de Adão ele fixou as fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus; mas a parte de Yahweh foi o seu povo, o lote da sua herança foi Jacó." (Dt 32:8-9, com parênteses acrescentado por mim)

Neste texto, parece que é mostrado o concílio de El, onde o chefe do panteão distribui os povos para cada um de seus filhos (outros deuses subordinados, como, por exemplo, Baal). Neste caso, a parte de Yhwh foi a descendência de Jacó, o povo de Israel.

É possível também que possa haver algum traço de memória referente a este concílio em outros textos, como por exemplo:

Salmo 82 - Elohim preside, na assembleia de El, em meio aos deuses ele julga: “Até quando julgareis falsamente... eu declarei: vós sois deuses, todos vós são filhos de Elion”.

OBS: considerando que o salmo 82 faz parte do saltério eloísta, é possível que no lugar do termo “Elohim”, incialmente, havia “Yahweh”

Salmo 89:6-7 - E quem, sobre as nuvens, é como Yahweh? Dentre os filhos dos deuses, quem é como Yahweh? El é terrível no conselho dos santos, grande e terrível com todos os que o cercam.

Neste momento, já pode se notar um destaque de Yhwh entre os filhos de El.

Bem, até aí Yhwh é um filho de El, que já, aparentemente, começa a se associar a uma divindade nacional do povo de Israel. Sabemos que, posteriormente, Yhwh será considerado o deus único de Israel, mas como isso aconteceu?

5 - Yhwh Gradualmente Toma o Lugar de El


Em Kuntillet Ajrud, foi-se descoberto, desenhos com inscrições relatando textos como “... Eu vos abençôo por Yhwh de Samaria e sua Asherá”, outros textos fazem referência a um “Yhwh de Temã e sua Asherá”. 

Asherá era uma deusa semítica. Esta deusa era, originalmente, a consorte (esposa real) de El e mãe de deuses menores do panteão. Entretanto, nesse momento, Asherá aparece como consorte de Yhwh. Ou seja, Yhwh tomou o lugar de El. Estas inscrições são datadas por volta do início do século VIII a.C. Ou seja, em algum momento, já no início do século VIII, por algum motivo, Yhwh já tomou o lugar de El e inclusive está com a sua consorte.



Dois personagens sob a inscrição do Pithos A ("Eu vos abençoo por Yhwh de Samaria e sua Asherá") encontrada em Kuntillet Ajrud, datada do início do século VIII a.C.


Outras atestações, como inscrições em Khirbet el-Qom, fazem também referência a Yhwh e Asherá.

O culto a Asherá, juntamente com Yhwh, permaneceu por muito tempo (talvez só tendo sido de fato eliminado depois do exílio). Embora os redatores bíblicos tenham tentado apagar qualquer referência a um culto a Asherá, algumas pistas ainda podem ter escapado, como, por exemplo, em Jeremias 44. Neste texto, o orador lhes explica que a catástrofe do exílio ocorreu porque o povo havia se devotado a outros deuses. Os judaítas aos quais ele se dirige, contestam essa interpretação dizendo o seguinte:

“Nós vamos fazer tudo o que decidimos: queimar incensos à Rainha do Céu e fazer-lhe libações como havíamos feito, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém... tínhamos então, fartura de pão, éramos felizes sem conhecer a desgraça. Desde que cessamos de oferecer incenso à Rainha do Céu, tudo nos falta e nós perecemos pela espada e pela fome.”

É possível que o termo “Rainha do Céu” se refira a uma manifestação da deusa Asherá (como também a Ishtar, que seria um outro caso). A importância das mulheres no culto a Asherá é atestada no relato de 2 Reis 23:6-7. Sendo assim, de acordo com os argumentos apresentados pelos judaítas em resposta a Jeremias, o exílio ocorreu porque eles pararam de realizar oferendas à “Rainha do Céu” (talvez uma reclamação da reforma de Josias?).

Bem, então, Yhwh, que inicialmente era um deus “outsider”, vai tomando o lugar de El, de modo que El desaparece. Posteriormente, o termo El, assim como seus derivados (Eloá, Elohim, etc), acaba se tornando um termo genérico para “deus” sem designar um nome próprio. Poderíamos relacionar outras características, como por exemplo, a questão de El morar em uma tenda e Yhwh, de acordo com a Bíblia Hebraica, ter a sua primeira casa também em uma tenda (tabernáculo). Também já foram demonstradas no tópico 2.1 deste texto as referências a El, que posteriormente passam a ser atribuídas a Yhwh. Mas, se tratando de um breve resumo, vamos seguir em frente.

6 - Yhwh Absorve Características de Outros Deuses


Mas, não é só El que é “absorvido” por Yhwh. Outros deuses também têm as suas características atribuídas a Yhwh com o passar do tempo. Um deles é Baal. Convém aqui fazer uma pequena divisão entre o Israel e Judá, o Reino do Norte e o Reino do Sul.

6.1 – Em Israel


Mais especificamente em Israel, o Reino do Norte, Yhwh recebe características de um deus da tempestade, assim como Baal (ou Hadad). Assim, textos que já citamos como Jz 5:4:5 e Salmos 68:8-9 e 18, dentre diversos outros, trazem, junto a Yhwh, elementos que são característicos de um deus da tempestade cananeu, como Baal. Em Jr 23:19, temos a tempestade de Yhwh. Baal possui o título de “cavaleiro das nuvens”. Em Sl 104:3, Yhwh utiliza as nuvens para percorrer o céu: “das nuvens ele fez o seu carro”. No salmo 29:3-9, Yhwh é descrito com característica de um deus da tempestade que domina as águas, como também é descrito Baal nos textos de Ugarit. Baal (assim como El) é comumente figurado a um touro e no Reino do Norte, Yhwh, segundo a Bíblia Hebraica, foi adorado nos santuários de Betel e Dã com estátuas de touro. Isso pode explicar também a estatueta de touro encontrada no sítio de Dotan, perto de Israel datando cerca de 1200-1000 a.C. Cabe ressaltar que o Reino do Norte, até o seu fim, em 720 a.C, pelos assírios, manteve-se politeísta, como relata uma inscrição assíria conhecida como o prisma de Nemrod, no qual Sargão II relata a tomada da capital do Reino do Norte: “Eu contei, como prisioneiros, 27.280 pessoas, com seus carros e os deuses em quem confiavam.”

6.2 – Em Judá


Uma das teorias para o início do culto de Yhwh em Judá, o Reino do Sul, indica que este culto teve início por meio de Samuel que teve forte contato com o santuário de Siló e ungiu Saul (se é que estes foram figuras históricas), ou então por Davi (que tem seu nome atestado na estela de Tel Dan, conforme o consenso de tradução da maioria dos estudiosos). Mas, independentemente destas hipóteses, pouco a pouco, Yhwh foi ganhando espaço em Judá, deixando de ser um deus de uma cidade para um deus nacional. Essa evolução parece terminada em uma inscrição de Khirbet Beit Lei em uma tumba que pode significar o seguinte: “Yhwh é o deus de todo o país (de toda a terra), as montanhas de Judá pertencem ao Deus de Jerusalém.”. Essa inscrição data do século VIII ao século VI e reivindica um território maior ao “deus de Jerusalém”. Em Judá, uma das características mais marcantes é a apropriação de Yhwh da vitória sobre o Mar (Yam) realizada por Baal. Yam é um monstro/dragão/serpente marinho(a), deus e personificação do Mar, que é derrotado por Baal e este passa a ser rei (conforme KTU 1.10 III 12-15). Em contrapartida, temos na Bíblia Hebraica referências à batalha de Yhwh contra monstros marinhos como Leviatã e Raabe.

No salmo 74, nos versículos 12-17, temos a referência de Yhwh sendo elevado como rei após a batalha contra o mar e os monstros marinhos: “Tu, porém, ó Deus, és meu rei desde a origem, quem opera libertações pela terra. Tu dividiste o mar com o teu poder, quebrastes a cabeça dos monstros das águas; tu esmagaste as cabeças do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens. Tu abriste fontes de torrentes, tu fizeste secar rios inesgotáveis; o dia te pertence, e a noite é tua, tu firmaste a luz e o sol, tu puseste todos os limites da terra, tu formaste o verão e o inverno.”

Temos outros exemplos desse embate em textos como o Salmo 89, Salmo 93, dentre outros.

Este embate entre uma divindade e um monstro marinho que personifica o próprio mar também pode ter referência ou ter uma releitura, a partir do exílio, com base no poema mítico Enuma Elish, que retrará a ascensão de Marduk, divindade babilônica, após derrotar Tiamat, monstro marinho que representa o caos e o mar. Passaremos por essa fase mais adiante.

Em Judá (de certa forma, também em Israel), houve também uma apropriação de elementos de cultos solares, dentre outros tipos de cultos que não vamos abordar aqui para não estender mais ainda o texto.

6.3 – Conclusão do tópico


Enfim, características de diversos deuses do panteão cananeu, sobretudo El e Baal, são, gradualmente, atribuídas a Yhwh. Neste momento, após a destruição do Reino do Norte, um acontecimento é muito importante para a definição da identidade de Yhwh e a transição de um politeísmo para um henoteísmo (pelo menos na religião “oficial”): a reforma de Josias.


Estatueta de Baal encontrada em Ras-Shanra (antiga Ugarit), datada entre os séculos XIV-XII - possivelmente, havia uma lança em sua mão levantada.

7 – Tópico Extra - Informações Para o Leitor Leigo


Abro um “parênteses” aqui. Para o leitor totalmente leigo no assunto, gostaria de deixar algumas informações para uma melhor compreensão do que vem a seguir:

1 - As pesquisas arqueológicas mais atuais demonstram que nunca houve um reino unificado entre Israel e Judá. Sempre foram reinos separados.
2 - As pesquisas arqueológicas mais atuais demonstram que nunca houve um “êxodo do Egito” do povo de Israel, da forma que descrevem as narrativas bíblicas.

Não vou entrar em detalhes destes assuntos, pois ambos são extensos. Fecho o “parênteses”.

8 – A Reforma de Josias e o Henoteísmo em Judá


Com o Reino do Norte já destruído pelos assírios em 720 a.C, Josias foi um rei que governou Judá no final do século VII a.C. e foi amado pelos redatores bíblicos (2Rs 23:25; 2Rs 22:2). Josias fez uma reforma religiosa, onde promoveu a centralização do culto no templo de Jerusalém e com isso destruiu os “banot” (os “lugares altos”), santuários ao ar livre, em muitos casos consagrados a Yhwh. Realizou modificações no templo removendo símbolos cultuais de outros deuses, como Baal e Asherá. A reforma se estendeu além do seu domínio, chegando a atingir o antigo Reino do Norte, onde destruiu o altar do santuário javista de Betel. É bem provável que neste período surge uma versão primitiva do livro de Deuteronômio, onde as ideias de Josias estão muito bem atestadas e o vocabulário do texto é muito semelhante ao texto que conta a história de Josias.

Compare o seguinte:

Trecho do código da aliança: Êxodo: 20:24-25 – “Far-me-ás um altar de terra, e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos e os teus sacrifícios de comunhão, as tuas ovelhas e os teus bois. Em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti e te abençoarei. Se me edificares um altar de pedra não o farás de pedras lavradas...”

Nesse texto acima, há permissão para o levantamento de um altar espontâneo em qualquer lugar.

Deuteronômio 12 já começa com uma destruição de lugares altos muito semelhantes a da reforma de Josias e, em seguida, diz: “Em relação a Yhwh... buscá-lo-eis somente no lugar que Yhwh vosso Deus houver escolhido, dentre todas as vossas tribos, para aí colocar o seu nome e aí, fazê-lo habitar. Levareis para lá vossos holocaustos e vossos sacrifícios, vossos dízimos e dons das vossas mãos, vossos sacrifícios votivos e vossos sacrifícios espontâneos, os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas. E comereis lá, diante de Yhwh, vosso Deus, alegrando-vos com todo o empreendimento da vossa mão, vós e vossas famílias, com o que Yhwh teu Deus te houver abençoado.” (vv 4-7). Ou seja, contrariando o texto de Êxodo, aqui o sacrifício/holocausto deve ser realizado “somente no lugar que Yhwh houver escolhido”. O tema da centralização do culto é tão importante, que é repetido mais duas vezes, neste capítulo. Veja: “Fica atento a ti mesmo! Não oferecerás holocaustos em qualquer lugar que vejas, pois é só no lugar que Yhwh houver escolhido, numa das tuas tribos, que deverás oferecer teus holocaustos; e lá que deverás por em prática tudo o que eu te ordeno.” (vv 13-14). E ainda: “Não poderás comer em tuas cidades o dízimo do teu trigo, do teu vinho novo e do teu óleo, nem os primogênitos das tuas vacas e ovelhas, nem algo dos sacrifícios votivos que hajas prometido, ou dos teus sacrifícios espontâneos, ou ainda dos dons da tua mão. Tu os comerás diante de Yhwh teu Deus, somente no lugar que Yhwh teu Deus houver escolhido, tu, teu filho e tua filha, teu servo e tua serva, e o levita que habita contigo.” (vv 17-18).

Então, Josias empreende a sua reforma e, no final da sua vida, é dito que “Não houve, antes dele um rei que, como ele, voltou-se para Yhwh com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força.” (2 Rs 23:25). Fórmula idêntica à utilizada em Dt 6:4-5: “Houve, ó Israel: Yhwh, é o único Yhwh! Portanto, amarás a Yhwh, teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.”.

Poderia também citar evidências glípticas e epigráficas em sinetes e inscrições que podem corroborar a reforma de Josias, mas vou seguir em frente.

Com a reforma de Josias, a centralização do culto e o tema “Yhwh é o único Yhwh!” ou “Yhwh é um!”, Josias unifica Yhwh em um só. Se antes, conforme as inscrições de Em Kuntillet Ajrud, havia um “Yhwh de Samaria” e um “Yhwh de Temã”, agora não há mais. Não há mais distinção entre o Yhwh do Norte, do Sul, de Betel ou de qualquer outro lugar. “Yhwh é um!” e seu lugar de culto é o templo de Jerusalém.

Como religião e política andam de mãos dadas, o contexto político é o seguinte: O império assírio, que dominava aquela região, estava em decadência e, com a ascensão do império babilônico, tinha mais com o que se preocupar e não podia dar muita atenção àquela região, deixando o antigo Reino do Norte “abandonado”. Josias vê nisso a possibilidade de expandir o seu território, abrangendo as terras do antigo Reino do Norte. Para isso, usa a religião como ferramenta. É nesse momento que surge a história de um reino unificado no passado e as primeiras narrativas da conquista da terra (segundo alguns autores, Josué, é um “Josias disfarçado”) onde Yhwh mostra-se superior aos demais deuses cananeus. Nessa época, surge o henoteísmo, que nada mais é que a posição em que se cultua um deus e se assume a existência de outros deuses, mas o seu deus é o maior entre eles. Em um contexto henoteísta (ou monolátrico) faz sentido realizar afirmações como “Quem é igual a ti, ó Yhwh, entre os deuses?” (Êx 15:11, conferir também 1Rs 8:23, dentre outras). Repare que, em textos como este, não há uma afirmação de que os outros deuses não existem, mas, sim que Yhwh é o maior dentre eles. Neste contexto, faz sentido, Jefté utilizar um argumento teológico para resolver um problema territorial com os amonitas: “Não possuis tudo o que teu deus, Camos, te deu? Do mesmo modo, tudo o que Yhwh, nosso Deus, tomou dos seus possuidores, nós o possuímos!” (Jz 11:24). Nesse contexto, também podem ter surgido as primeiras versões de algumas narrativas da vida de Moisés, cujo o nascimento se assemelha ao de Sargão, escrita na época de Sargão II. Assim, como alguns tratados assírios, como o juramento de lealdade, que em 672 a.C., Asaradon tinha feito para os reis vassalos (Judá era vassala assíria nessa época) prestarem em favor do seu filho Assurbanipal, podem ter influenciado a escrita do Deuteronômio com semelhanças em alguns trechos.

Josias morreu sem conseguir implantar o seu projeto político de um reino unificado. Segundo a narrativa na Obra Historiográfica Deuteronomística (OHD), morreu em Meguido (2 Rs 23:28-30). Entretanto, os autores posteriores, na Obra Historiográfica Cronista (OHC), enfeitaram um pouco mais e colocaram a sua morte em Jerusalém e por não ouvir a voz de Yhwh provinda do faraó Necao (2 Cr 35:20-25).

Pois bem, nesse momento, podemos dizer, que, ao menos oficialmente, temos um henoteísmo em Judá. Mas não vai demorar muito para uma nova mudança teológica surgir.

9 - Exílio e Pós-Exílio – Yhwh é o Deus Universal - Do Henoteísmo ao Monoteísmo


Alguns anos depois, Judá se torna vassala do império babilônico, que em 605 a.C vence o exército egípcio (o Egito teve um rápido controle sobre a região) em Carquemis. Em 598-597 a.C e 589-588 a.C, ocorrem algumas revoltas políticas em Judá contra o seu soberano. Em 597 a.C, ocorre a primeira deportação e em 598 a.C ocorre a segunda deportação e a destruição de Jerusalém e do templo de Yhwh. Houve ainda uma terceira deportação em 582 a.C.. Com isso, os judeus perderam sua terra, seu templo e seu rei. Com isso, entra a maior crise religiosa do javismo. O pensamento era: “Ora, se Yhwh é o nosso deus nacional e é o maior dentre os deuses, como podem os babilônios, que servem ao deus Marduk, destruírem o nosso povo, a nossa terra e ainda mais, a própria casa de Yhwh? Então, está claro que Marduk é maior do que Yhwh!”. Com isso, é necessário que a elite religiosa possua uma resposta para a questão, senão poderia ser o fim do javismo! A resposta é uma mudança teológica com uma releitura dos acontecimentos, textos e tradições. Agora é o seguinte: “Na verdade, Yhwh não é menor do que Marduk. Na verdade, Yhwh é o único deus!”. Yhwh agora passa a ser o deus universal! E se os judeus então passaram pela desgraça que passaram é por designio de Yhwh. O exílio é o castigo de Yhwh pelo pecado do povo. Nesse momento, a escola deuteronomista produz a Obra Historiográfica Deuteronomística (OHD - livros de Deuteronômio até 2 Reis, não ainda da forma definitiva que temos em mãos, mas já em certa proporção). Com isso, pode-se mostrar que o povo é culpado. No livro de Juízes, vemos de forma extremamente repetida o loop:

1 - O povo está sob o domínio de outros povos;
2 - levanta-se um juiz javista, reconcilia o povo com Yhwh e salva-o da opressão dos outros povos;
3 – o povo passa a servir novamente outros deuses;
4 – Yhwh os entrega à mão de outros povos;

Em seguida, o ciclo volta, repetidamente, ao ponto 1. O povo nunca aprende a lição.

Com a monarquia, a idolatria é institucionalizada com reis piores ainda, com cismas religiosos, etc. O quadro vai se deteriorando cada vez mais nessa história a ponto de culminar no castigo final de Yhwh, a destruição de Jerusalém e o exílio. Mesmo com o exemplo retratado na destruição do Reino do Norte, o povo não muda, por fim, seguindo o objetivo da OHD, é o próprio Yhwh que provoca a invasão babilônica (2 Rs 24:2-3 e 20)!

É nesse período de releitura, que vemos coisas nunca vistas antes no javismo. Nabucodonosor, um rei de outro povo (babilônico), passa a ser chamado servo de Yhwh (Jr 27:6). Posteriormente, Ciro, o rei persa, que liberta o povo do exílio, é chamado de messias de Yhwh (messias é um termo que vem do hebraico que significa “ungido”, assim como “cristo” é um termo que vem do grego que também significa “ungido”) e pastor de Yhwh. Yhwh passa a ter o controle universal, controle sobre todos os povos. E a casa de Yhwh? Agora, Yhwh não mora mais em um templo, ele não depende disso, como se vê no livro de Ezequiel, seu trono, agora, tem rodas e pode ir aonde ele quiser, inclusive na Babilônia, junto aos exilados.

O livro de Isaías é dividido em 3 partes. A primeira parte, composta pelos capítulos 1-39 é produzida, em sua forma primitiva, antes do Exílio (com várias edições e inserções posteriores). A segunda parte, composta pelos capítulos 40-55, chamada de Deutero-Isaías é produzida, à partir do exílio. A terceira parte, composta pelos capítulos 56-66 é produzida depois do exílio e é chamada de Trito-Isaías. Se você parar para ler o Deutero-Isaías, produzido a partir do contexto do exílio, você vai notar como é repetido, exaustivamente, o tema de Yhwh como único Deus existente (por exemplo em Is 41:21-29; 43:8-13; 44:6-18; 45:5-6; 45:14-25; 46:5-9; 48:5; etc ). Um outro tema muito caro para o Deutero-Isaías é o tema de Yhwh como deus criador (por exemplo em Is 40:26; 40:28; 41:18-20; 43:1 – atenção aos termos “criou” e “modelou/formou”; 43:7; 43:15; 44:21-28; 45:7-13; 45:18; 48:6-7; 48:12-13; 49:8; 51:3 – referência ao Éden; 51:13-16; 54:5; etc).

É nesse contexto que surge, por exemplo, o primeiro dos dois relatos da criação, que temos em Gênesis 1:1-2:4ª, que consiste em um diálogo, ou, melhor dizendo, uma resposta ao mito da Enuma Elish da criação do mundo e dos humanos e ascensão de Marduk como “o senhor”.

10 – Novas Questões Geradas pelo Monoteísmo


Com o passar do tempo, vão surgindo escolas como a já citada deuteronomista e a sacerdotal, que vão tratar as coisas de forma um pouco diferentes. Por exemplo, surge a questão: Como um deus universal pode estar ligado a um povo específico? A escola deuteronomista responde com o desenvolvimento da Aliança entre Yhwh e Israel, já a escola sacerdotal com um monoteísmo inclusivo. Inclusive, com a ascensão do império medo-persa e após o retorno dos exilados para a sua terra, em 538 a.C, sob a permissão do imperador Ciro, o escrito sacerdotal vai se desenvolvendo cada vez mais com a história dos patriarcas e do êxodo, mostrando uma revelação de Yhwh antes mesmo de haver templo, de haver terra ou de haver povo de Israel. Agora, Yhwh não é mais vinculado a nada disso. Ele não depende destas coisas.

Sob o domínio persa, há também diversas influências na religião judaica. Yhwh adquire epítetos do deus persa Ahura Mazda, como “Deus do céu”, epíteto que consta em muitos textos à partir deste período pós-exílico (por exemplo: Esd 1:2; 5:11-12; 6:9-10; 7:12; 7:21; 7:23; Ne 1:4-5; 2:4; 2:20; Dn 2:18; 4:34: 5:23; dentre outros). Na religião persa temos um forte dualismo retratado por Ahura Mazda (bom) e Angra Mainyu (mal). Nesse período surgem questões, como: “Um Deus único seria também o responsável pelo mal. Como pode um Deus único ser responsabilizado pelo mal (veja Is 45:7) e ser bondoso?”. Como resposta, a figura do Satã vai se desenvolvendo gradualmente e vai substituindo o lado “maléfico” de Yhwh. Por exemplo, na história onde Davi realiza um recenseamento do povo, feito que é tratado como um pecado no texto, temos uma divergência entre o texto de Samuel (mais antigo) e o de Crônicas (mais recente). Te faço a pergunta, quem incitou a Davi a realizar o recenseamento?

2 Sm 24:1 - A Ira de Yaweh se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles: “Vai”, disse ele, “e faze o recenseamento de Israel e Judá”.

1 Cr 21:1 – Satã levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel.

Veja, claramente, que Satã vai gradualmente, se apropriando do “lado negro” de Yhwh. A origem da personagem Satã e seu desenvolvimento na teologia judaica daria um outro texto mais detalhado. Talvez, em outro dia, escreva uma postagem sobre isso...

11 – Monoteísmo Mesmo?


Obviamente, o monoteísmo não foi aceito de uma hora para outra, mas, sim, bem gradualmente. Mesmo na época helenista (com o fim do império persa e ascensão do império grego e suas divisões), temos textos encontrados na comunidade de judeus de Elefantina, com juramentos por uma deusa de nome Anat, com listas de pagamentos cultuais com referências a uma tríade divina (Yahô, Anat e Assim-Betel).

Deixo aqui uma citação de Thomas Romer de um livro que vou referenciar ao final da postagem: “O politeísmo não desaparece, portanto, tão facilmente assim. Como lembra Pierre Lilbert, ‘o monoteísmo é muito difícil de ser pensado’. Aliás, a palavra mesma reflete um conceito moderno. A bíblia hebraica não conhece o termo ‘monoteísmo’, nem seu oposto ‘politeísmo’. Este último parece ser atestado pela primeira vez, com Filo de Alexandria, no primeiro século de nossa era, que opõe a mensagem bíblica à ‘dóxa polytheía’ dos gregos. Quanto ao termo ‘monoteísmo’, parece ser um neologismo do século XII. Os deístas falavam de ‘monoteísmo’ para designar a religião universal da humanidade. Thomas Moore e outros aplicaram essa noção ao cristianismo para distinguí-lo das outras crenças da Antiguidade e defendê-lo da crítica judaica segundo o qual o cristianismo não respeitava o mandamento da exclusividade de Deus. Enquanto os deístas utilizam o conceito de monoteísmo num sentido inclusivo, os defensores das religiões reveladas lhes atribuem uma função de exclusão (a fé monoteísta permite distinguir as religiões bíblicas das outras).”.

12 – A Mudança Continua...


Por volta do século V, os samaritanos constroem um templo javista em Gazirim (que no século II vai ser destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano da dinastia dos hasmoneus) e são muito importantes na formação de muitos textos do pentateuco. Por volta do século IV, o nome de Yhwh vai deixando de ser pronunciado pelos judeus. Possivelmente, no século III, a Torá é traduzida para o grego, aumentando mais ainda a ideia de um Yhwh universal.

Séculos depois, por volta de 7-6 a.C. nasce um menino chamado Jesus e, à partir daí, uma nova releitura será realizada. E Yhwh segue mudando, mais uma vez...

13 – Referências:


ROMER, Thomas. A Origem de Javé: O Deus de Israel e seu nome. Paulus Editora, 2016.
(A principal fonte de informações para o texto foi este livro. Recomendo-o para quem quer se aprofundar no assunto.)

LOPES, Reinaldo José. Deus, Como Ele Nasceu. Editora Abril, 2015
(Recomendo este livro para o leitor totalmente leigo que busca uma leitura leve sobre o tema.)

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Yahweh como um deus outsider: duas hipóteses explicativas para a introdução do culto de Yahweh em Israel. in Revista Ágora, nº 26. 2016. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/agora/article/view/14056. Acessado em 26 de janeiro de 2020.

MILLER, Patrick D. Israelite Religion and Biblical Theology: Collected Essays. A&C Black, 2000.

BIBLIA. Bíblia de Jerusalém. Paulus Editora, 2012. notas e conteúdos de apêndice.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

O NOME DE DEUS



Muitos cristãos, mesmo com anos de prática da sua religião, chamam o seu deus de “Deus”. O termo “deus” não é um nome, mas, sim, um título. Muitos não sabem que Deus tem um nome de verdade.

Indo direto ao ponto, o nome dele é יהוה. Transliterando estes caracteres hebraicos, teríamos "YHWH". Essas 4 letras são conhecidas como o tetragrama sagrado.

Esse é o nome de Deus, que consta no texto em hebraico do Antigo testamento. Nas traduções das maiorias das bíblias, troca-se esse nome por “Senhor”. Há casos também do deus bíblico ser tratado por meio de títulos, como, por exemplo, “elohim”( אֱלֹהִים), que, basicamente, é o título “deus” mesmo (por exemplo, quando se fala de “deuses” de outras nações, se utiliza o título “elohim”... pois, de fato, é um título para uma divindade e não um nome próprio).

Nesse momento, talvez você já tenha se perguntado: “Mas como se pronuncia o termo YHWH, já que não tem vogais?”. Bem, essa é uma questão longa, onde não há um consenso claro. É o seguinte:

O hebraico, que é o idioma original do AT, possui um alfabeto consonantal, ou seja, constituído apenas de consoantes. Não há vogais. Somente muitos séculos depois, mais ou menos entre os séculos III e X da era cristã, que alguns sábios judeus, chamados massoretas, preocupados com a pronúncia oficial do termo, elaboraram alguns pequenos sinais para que fossem encaixados entre as consoantes. Porém, se depararam com um problema. Os judeus não pronunciavam o nome de YHWH por séculos. Umas das razões para isso, se encontra em um dos dez mandamentos que estipula: “Não usarás em vão o nome do teu deus”. Inclusive, na tradução grega do texto, que encontramos em manuscritos como o Codex Vaticanus ou Codex Sinaiticus já evita-se o uso deste nome, trocando o tetragrama por títulos como o já mencionado “theós” (“Deus”) ou “Kýrius” (“Senhor”). Como os judeus não pronunciavam o nome, então já não havia uma forma consensual de se pronunciar o tetragrama. Inclusive, foram-se aplicadas, então, as vogais de”’adōnāy” sobre o Tetragrama indicando que ao se ler o tetragrama deveria-se pronunciar ’adōnāy (“Meu Senhor”) para, justamente, evitar o nome. Não se podia substituir o tetragrama diretamente, por ’adōnāy? Não. Pois, o texto consonantal original era sagrado e intocável. O máximo seria colocar esses pequenos sinais (que parecem pequenos sinais de pontuação) entre as letras significando as vogais. Por causa de umas regrinhas gramaticais do idioma (tipo essas regrinhas: antes de “p” e “b” não se usa “n”, mas sim, “m”), a primeira vogal “a” se torna “e” ficando assim: “YeHoWaH” ou, como alguns textos que se contentam em incluir apenas a primeira e última letra, “YeHWaH”(a primeira dessas duas formas, gerou, posteriormente, a leitura do nome como o “Jeohvah”, trocando o “i” pelo “j” devido a evolução da fonética latina, ou, simplesmente “Jeová”). Existe também a substituição do tetragrama por “hashem” (“O Nome”), o que, com a aplicação da vocalização, poderia gerar “Yahweh”.

Então, como o alfabeto era consonantal e a pronúncia do nome não foi registrada, não é possível saber qual era o nome, certo? Bem... mais ou menos...

Durante o passar do tempo, foram realizadas inúmeras tentativas de se reconstruir a pronúncia do nome através de algumas evidências. Uma das evidências utilizadas foram os nomes teofóricos (nomes constituídos com elementos divinos) que fazem referência ao nome do deus hebraico, por exemplo Yirmeyahu (Jeremias), Yesa Yaho (Isaías), Yehonatan (Jônatas), etc, expressões como hallelu-yah (louvai a Yah) ou até mesmo outros frases de textos bíblicos como que continham o nome de forma abreviada, como, por exemplo, “Minha força e meu canto é Yah” (Ex 15:2), “Yah, YHWH é a minha força” (Is 12:2), etc. Através dessa e outras evidências analisadas por especialistas, há uma possibilidade de se realizar a pronúncia através de algo como Yahô/Yahu, mas sobretudo uma grande possibilidade da primeira sílaba ser vocalizada por “Yah”, com um “a” no meio.

Um outro exemplo, consta no texto de Êxodo 3, onde YHWH estaria revelando o seu nome a Moisés. No texto, parece haver um jogo de palavras do nome divino com o termo “ehyeh”, como uma rima ou trocadilho, indicando que o nome divino terminaria também com “eh”.

Essas são algumas das evidências que podem sugerir uma pronúncia como “Yahweh” (Iavé ou Javé). Esta forma, parece ser a mais popular e é encontrada em algumas bíblias, como, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém. Alguns pais da igreja cristã também confirmam essa forma, entretanto, outros já afirmam outras variações, como Yabé, Yaé, Yahô, etc.

Há também tentativas de se reconstruir com base em textos de outros idiomas (babilônicos, egípcios, etc) que transliteram o termo ou nomes teofóricos, que parecem evidenciar o já mencionado Yahô/Yahu. Um exemplo: Há um texto grego encontrado em Qumran (4QpapLXXLev – esse é o nome do manuscrito) que contém um fragmento de Levítico que traduz o tetragrama por Yahô, mostrando que, nem sempre houve essa recusa de se pronunciar o nome, como consta nos textos gregos mais recentes que temos.

Considerando Yahô, pode ser que mais antigamente, o tetragrama poderia ser um trigrama, YHW, onde o “w” poderia não ter valor consonantal, mas, sim se tratar de uma “mater lectionis” (certos casos, que ocorriam no hebraico onde algumas consoantes eram usadas para indicar vogais) indicando o som do “o”.

Sendo assim, será que essa forma mais curta (YWH) acabou evoluindo para a forma mais longa (YHWH)? Ou será que ambas coexistiram, como consta nas inscrições de Kuntillet Ajrud onde pode-se encontrar os dois termos?

Talvez o significado desses termos possa ajudar... Afinal o que significa Yahô e Yahweh?

Bem... isso é assunto para outra publicação. 

Para quem quiser mais detalhes:


A maior parte das informações, eu tirei do livro “A Origem de Javé: O Deus de Israel e seu nome” do autor Thomas Romer. Embora o assunto do livro seja a origem e a evolução do Deus de Israel (assunto que estou pensando em tratar na próxima postagem do blog - SPOILER!), no livro há um capítulo abordando o tema do nome divino.





A ORIGEM DE SATÃ

Introdução Engana-se quem pensa que a teologia contida na Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) é a mesma do começo ao fim. A Bíblia Hebrai...