domingo, 7 de junho de 2020

(PARTE 1) OS TEXTOS BÍBLICOS SÃO MAIS POLÍTICOS DO QUE VOCÊ PENSA



Introdução

Quem pensa que política e religião não se misturam está muito enganado. A própria Bíblia é um livro muito político. Pretendo demonstrar em um texto alguns exemplos de questões políticas que influenciaram na elaboração dos textos bíblicos. Porém, ao escrever o texto, mesmo com tentativas de encurtá-lo, ele acabou ficando grande. Então, achei melhor dividi-lo em duas partes.

Na PARTE 1, que é constituída por essa postagem, faço uma contextualização do que estava sendo vivido no momento tratado e abordo as questões acerca do debate político entre os sobreviventes do exílio babilônico em relação a como lidar com os povos que eles encontraram na terra para a qual retornaram. Temos duas ideias conflitantes refletidas nos textos (1) dos patriarcas e (2) do êxodo e da conquista da terra.

Na PARTE 2, que você pode acessar CLICANDO AQUI, abordo o debate entre um grupo que, após o retorno do exílio babilônico, era a favor da instituição da monarquia e outro grupo que era contra a instituição da monarquia. O segundo grupo vence (não há o que esconder). Em seguida, demonstro como foi a ascensão do poder sacerdotal como governantes políticos na Judeia. Conhecer sobre o domínio político sacerdotal foi um “divisor de águas” na minha compreensão dos textos bíblicos. Pude perceber a intenção política sacerdotal em muitos textos que antes eu não via nada de mais. E é esse o ponto onde eu, de fato, quero chegar. Entretanto, para chegar nessa parte, acho importante, por questões didáticas, passarmos pelo conteúdo da PARTE 1 a fim de que o leitor passe, antes, por uma contextualização do período e por, pelo menos, um exemplo do uso da política na composição dos textos bíblicos. Portanto, saiba que o conteúdo principal está na PARTE 2. Mas não deixe de ler, antes a PARTE 1, pois acredito que será importante para a compreensão da segunda.

 

Contextualização

No início do século VI AEC, Judá foi invadida pelos babilônicos e Jerusalém foi destruída. A aristocracia, os sacerdotes, os altos funcionários públicos e a população urbana, de forma geral, foram deportados. A população rural, camponesa, que constituía a maior parte da população, foi mantida nas terras.

Em 539 AEC, a Babilônia foi tomada por Ciro e o império persa se impôs. Os livros de Crônicas e Esdras informam que, em 528 AEC, Ciro escreve um edito permitindo os judeus retornarem para as suas terras. Embora esse edito em si não tenha confiabilidade histórica, essa data marca o retorno dos judeus para a sua terra. Mas não houve apenas um único grupo de exilados que em uma data específica retornou para Judá. É bem provável que a partir de 539 AEC (ou talvez até já na época de Evil Marduque) já houve retorno de grupos de exilados e sem dúvida alguma houve novos grupos bem posteriores, principalmente após o apoio do império persa. Mas deve-se considerar que nem todos os judeus retornaram do exílio. Houve quem se estabeleceu por lá e decidiu ficar.

Como já comentado em outras postagens deste blog, o exílio foi um divisor de águas na teologia judaica. Para ver um post que dá uma passada no assunto, CLIQUE AQUI.

Outras questões que influenciaram muito a teologia judaica foram as demandas ocorridas no pós-exílio, desde o início, à partir o encontro dos sobreviventes (a elite religiosa que retorna) com os remanescentes (o povo que fica na terra) até séculos adiante. A Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento), como possuímos em mãos, é fruto do período pós-exílico. Obviamente, temos textos pré-exílicos, porém os redatores finais da Bíblia Hebraica, que vão editar a forma final dos textos, de forma generalizada, são pós-exílicos.

 

Uma história normal X Uma história inventada

O historiador Mario Liverani, em seu livro “Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel”, que será a base principal para este texto, descreve a história antiga de Israel desde o final do período do bronze até o período persa. Ele divide o livro em duas partes: “Uma História Normal” e “Uma História Inventada”. Na primeira parte, “Uma História Normal”, ele conta a história de Israel do início do bronze tardio até o exílio. Nesta parte são demonstradas as origens do povo de Israel e Judá, o período monárquico, suas relações com povos vizinhos e os impérios que ascenderam, as questões sociais e religiosas... tudo isso de forma cronológica. Nesta parte, Israel e Judá não são muito diferentes de outros povos quaisquer do Levante. Na segunda parte, “Uma História Inventada” ele conta a história desde o fim do exílio até o fim do período persa. É nesta parte que ele mostra como, em meio às demandas politicas, sociais e religiosas vai se desenvolvendo uma história inventada sobre o povo, diferente da história real, tratando as questões do momento pós-exílico através de mitos e lendas sobre um passado remoto.

 

Encontro dos sobreviventes com os remanescentes

Uma parte considerável dessa “história inventada” se dá pela pelo encontro dos sobreviventes do exílio com os remanescentes que ficaram na terra.

É importante relembrar que os sobreviventes eram a elite religiosa e social. Segundo a sua visão, eles compõem o povo escolhido por Yahweh. Em diversos textos, a atenção de Yahweh e as promessas de retorno são dedicadas exclusivamente aos exilados. Em Ezequiel, por exemplo, a glória de Yahweh deixa Jerusalém para acompanha-los no exílio. A história do povo é a história da elite, mesmo sendo a minoria.

Ao retornar do exílio, o choque cultural entre os diferentes grupos foi muito grande. Os remanescentes não passaram pela revolução teológica e não seguiam os preceitos religiosos estipulados durante o exílio.

Os livros de Esdras e Neemias descrevem os acontecimentos que ocorreram no período-pós exílico na Judeia. Mesmo escritos bem depois da época dos primeiros grupos que retornaram e tendo alguns problemas de cronologia, estes livros informam sobre diversos problemas que ocorreram entre o povo que retornou do exílio e o povo que havia ficado na região de Canaã, sejam israelitas/judaítas ou não. Havia conflitos ligados à construção do templo, à construção das muralhas, problemas relacionados aos matrimônios que envolviam pessoas dos dois grupos, dentre outros. Um dos problemas mais relevantes foi a questão da terra, que estava ocupada com o povo que ficou. Como lidar com isso?

 

A questão da relação com os povos que se encontravam em Canaã

“O conflito de estratégias políticas e de interesses materiais entre núcleos de sobreviventes e comunidades locais gerou ‘cartas de fundação’ míticas sobre os títulos de propriedades da ‘terra’ entendida em conjunto. Como no plano pessoal era importante poder aduzir títulos de propriedade ou pelo menos genealogias familiares detalhadamente para cada clã e vila, assim toda a operação do retorno dos sobreviventes devia-se basear na capacidade deles de se referir a respeitáveis tradições que atribuíssem à terra de Canaã às tribos de Israel e que identificassem como legítimos herdeiros das tribos os núcleos dos sobreviventes e não as comunidades dos remanescentes. É, aliás, significativo o desvio do uso de ‘nahalah’, ‘propriedade hereditária’, típica dos textos de redação deuteronomista, para ‘ahuzzah’, ‘posse (fundiária)’, típica de textos de redação sacerdotal – desvio que parece marcar a passagem de uma reivindicação legal para uma tomada de posse.”

(LIVERANI, Mário. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel)

 

Entre os sobreviventes, podemos identificar duas linhas de pensamento divergentes. Ambas vão focar em “mitos de fundação” diferentes e deixar sua teologia registrada em oposição à outra. Temos o grupo mais maneável (vou chama-lo nesse texto de “Grupo Maneável”), que vai defender uma certa aceitação dos remanescentes que respondessem a uns requisitos mínimos de natureza étnica e religiosa. Por outro lado, temos o grupo mais radical (vou chama-lo nesse texto de “Grupo Radical”) que vai defender uma forte separação dos remanescentes, sobretudo os de origem não judaíta. É provável que as ideias do primeiro grupo, tenham prevalecido no início, enquanto ainda era viva a opção monárquica (trataremos sobre isso na PARTE 2). Mas, por fim, a segunda posição se tornará a vencedora.

Os mitos de fundação tratados por cada grupo abordarão a chegada do povo na terra de Canaã. O Grupo Maneável trabalhará mais sobre o mito de fundação dos patriarcas (chegada pacífica em relação aos povos que habitam Canaã), enquanto o Grupo Radical trabalhará mais sobre o mito de fundação da conquista da terra (chegada violenta em relação aos povos que habitam Canaã).

 

A teologia/política do grupo mais maneável - Patriarcas

É fato que o estudo diacrônico dos textos dos patriarcas revela que, de início, os patriarcas não eram relacionados entre si. Em outras palavras, originalmente, Abraão não era pai de Isaque, que, por sua vez, não era pai de Jacó que também não era pai de José. Foram tradições independentes e provindas de regiões diferentes (por exemplo, Jacó, originalmente, vem do reino do norte, Israel, antes de ser destruído) que foram evoluindo e, posteriormente, foram unidas. Nesse processo de evolução, algumas versões de tradições duplicadas acabaram ficando no texto.

Exemplos:

Temos três textos distintos onde um patriarca engana um governante estrangeiro dizendo que sua mulher é sua irmã e o governante sofre ou corre um risco de sofrer um mal enviado por Yahweh/Elohim. (veja as semelhanças entre Gn 12:10-20 = Gn 20 = Gn 26:1-14 – nos dois últimos textos, se trata do mesmo governante).

Temos dois episódios em que, por conta de Sara e por conivência de Abraão, Agar é expulsa/foge para o deserto e o Anjo de Deus fala com ela em um poço sobre o futuro de seu filho (Gn 16:1-14 e Gn 21:8-20).

Temos duas tradições da venda de José em que em uma ele é vendido aos ismaelitas (Gn 37:25, 27, 28b) e na outra é vendido aos midianitas (Gn 37:28a, 36).

Estes são apenas alguns exemplos dentre vários.

Como alegam Israel Finkelstein e Neil Silberman, as histórias de Abraão parecem estar mais centradas na cidade arameia de Harã. Harã (ou Haran), segundo o texto de Gênesis, é a cidade de onde Abrão se separa da família dos seus pais e parte rumo à Canaã (Gn 12:4-5) e também se refere ao nome de um dos irmãos de Abraão (Gn 11:27-28). Porém, ao menos na redação final do texto, Abraão sai inicialmente de Ur, para depois se estabelecer em Harã (Gn 11:31). Ur se localiza na região da Mesopotâmia, que é exatamente a região de onde o povo do exílio babilônico voltou para Canãa. Abraão veio da mesma região dos exilados e sua viagem é um arquétipo para os atuais exilados que fazem o mesmo movimento.

Ao chegar da Mesopotâmia, diferentemente do que acontece na história da conquista da terra, Abraão se estabelece pacificamente. Ele é considerado, em meio ao povo da terra, ao mesmo tempo, “migrante e morador” na terra de Canaã (Gn 23:4). Abraão adquire suas terras sem conflitos. Teve que comprar o lote da terra onde poria o túmulo dos da família e fez segundo um “contrato verbal”, que é um eco dos contratos da época neobabilônica (Gn 23). Também Jacó teve que comprar um lote de terra perto de Siquém, onde fixaria as tendas (Gn 33:18-20). A posse dos poços do Neguev teve que ser discutida e depois negociada entre Isaque e o rei de Gerar (Gn 26:15:33). Observe que a promessa divina diz respeito à multiplicação da descendência futura, pondo em evidência a preocupação de uma adequação numérica para ocupar com sucesso uma terra prometida por Deus (ou pelo imperador persa), mas ocupada por outros (Gn 26:3-5; 12:2; 15:5; 17:6; 18:17-19; 22:16-18, etc).

Um dos maiores problemas relatados nos livros de Esdras-Neemias é a questão dos casamentos mistos, casamentos entre os judeus e o povo estrangeiro. O tema é tão importante que apenas essa problemática ocupa 2 dos 10 capítulos do livro de Esdras e sob este assunto ambos os livros são concluídos (Ed 9-10; Ne 13:23-31). Isso seria uma iniquidade gravíssima e era motivo exclusão da comunidade, confisco de bens (Ed 10:7-8) e agressão física e verbal (“... amaldiçoei-os e bati em diversos, arranquei-lhes os cabelos e ordenei-lhes em nome de Deus ‘Não deveis dar vossas filhas aos filhos deles, nem tomar como esposa, para vossos filhos ou para vós mesmos, algumas das filhas deles!’” - Ne 13:25). Inclusive, não apenas o casamento, mas os povos estrangeiros são tão abominados que qualquer contato cultural com eles deveria ser eliminado (Ne 13:1-3). Esse comportamento reflete as ideias do Grupo Radical (dissertaremos mais sobre ele adiante), que saiu vencedor na disputa, mas entra em conflito com o pensamento refletido nas histórias dos patriarcas.

Essa imagem negativa dos povos estrangeiros não apenas não está presente, de forma geral, nos textos dos patriarcas, mas é antagônica. Abraão possui uma mulher egípcia, Agar. Isaque casa com Rebeca e Jacó casa com Raquel e Lia, todas arameias. José toma por mulher Asenet, uma egípcia.

Abraão é tio e parceiro de viagem de Ló, pai dos moabitas e amonitas. Mas a parentela não para por aí! Os israelitas e os edomitas são tidos como irmãos (Esaú, pai dos edomitas é irmão de Jacó, pai dos israelitas). Também Abraão é pai de Ismael (pai dos ismaelitas/árabes, que inclusive é circuncidado) e de Midiã (pai do midianitas). De Nacor, irmão de Abraão descendem os arameus.


Origem dos povos
(Clique na imagem para ampliar)


Além disso, as relações demonstradas nas histórias dos patriarcas refletem o contexto político do período pós-exílico. Um dos vários exemplos é a relação entre Edom e Israel. Edom era um reino que se desenvolveu tardiamente a já havia sido, inclusive, vassalo de Judá. Porém, com os ataques babilônicos, o exílio e o enfraquecimento de Judá, os edomitas povoaram as partes meridionais de Judá, o vale de Bersabeia e as colinas de Hebron (uma região que logo seria conhecida como Idumeia - terra dos edomitas) e se tornaram uma nação mais poderosa que Judá. O retorno de Jacó à sua terra e seu encontro com o seu irmão que ficou por lá ocorre em um clima de sujeição e temor do primeiro em relação ao segundo e em uma situação em que o primeiro, tendo voltado de longe, deve encontrar espaço em uma terra que o segundo, que ficara ali, já ocupa (Gn 32-33). O mesmo vale para relações com arameus, árabes, etc em relação ao mesmo período da história que também podem ser identificadas nos elementos dos textos.

Outro caso interessante também é o episódio de Diná e Siquém (Gn 34). Há alguns epônimos em destaque na história: Siquém é pai dos siquemitas e Levi é pai dos levitas (o pessoal do templo). Após violentar Diná, Siquém passou a amá-la e desejou casar com ela. Porém, havia um obstáculo os filhos de Israel não podem se casar com estranhos incircuncisos. Para solucionar o problema, é realizado um acordo definindo que se houvesse circuncisão poderia haver o casamento. Porém, assim Levi e Simeão (representando o Grupo Radical) matam os siquemitas. Jacó (representando o Grupo Maneável) repreende os dois e posteriormente os amaldiçoa por seu rigor e sua dureza (Gn 49:5-7).

Abimeleque, de Gerar, é tratado como justo e questiona a Deus: “Farias perecer uma nação mesmo que ela fosse justa?” (Gn 20:4). Porém, o outro lado também ecoa: em contraposição, há registrada a resposta do debate do outro grupo onde o posicionamento é o de que não há justos entre os entre os estranhos (ver Gn 18:20-19:29, onde Abraão intercede por Sodoma e Gomorra tentando encontrar 50 justos, depois 45 justos, depois 40, depois 30, 20, e, por fim, 10 justos que salvariam as cidades, mas, ao final, as cidades são destruídas).

Mas não é só o grupo dos sobreviventes do exílio que utilizam o mito de fundação patriarcal para fins políticos. Segundo Ezequiel 33:24, nos tempos do exílio, o pessoal que ficou na terra utilizava Abraão para embasar a sua confiança na posse da terra. Claro que a versão da história de Abraão que temos em mãos é a versão sancionada pelos descendentes da elite religiosa que retornou do exílio. Embora certos debates e até mesmo opiniões bem divergentes tenham permanecido nos textos bíblicos, muita coisa, ao certo, foi vetada ou editada.

 

A teologia/política do Grupo Radical – Êxodo e conquista da terra

As pesquisas mais atuais sobre o Pentateuco mostram que, de início, o ciclo narrativo das histórias patriarcais e o ciclo narrativo das histórias do êxodo e da conquista da terra se tratavam de mitos de fundação independentes. Não havia ligação entre um e outro. As raras vezes em que os patriarcas são mencionados nos textos do êxodo e da conquista, como na apresentação de Yahweh a Moisés em Êxodo 3:6 (“Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó”) ou nos pequenos credos históricos (Dt 26 5b-9; Dt 6:20-23; Js 24:2b-13), são meras intervenções tardias para ligações das histórias. Segundo Jean Louis Ska em seu livro “Introdução à Leitura do Pentateuco”, a escola deuteronomista foi a primeira a criar o vínculo entre estas histórias.

No mito de fundação do êxodo e da conquista da terra, o povo passa também por uma situação similar aos tempos do retorno pós-exílico. Eles vem de outra terra, onde estavam dominados por outros povos e chegam em Canaã. Quando eu era criança e lia os textos do êxodo, uma coisa que me chamava a atenção era como o povo da história era estúpido. O mesmo povo que foi libertado da escravidão, que viu as pragas, o mar se abrindo, as colunas de fogo e nuvem, o monte Sinai inteiro fumegante, com trovões e se estremecendo, os vários milagres, o mesmo povo que não aguentava a pressão de ouvir a voz de Yahweh, achando que iria morrer, esse mesmo povo frequentemente desconfia do poder de Yahweh e quer voltar para o Egito. O povo dizia que no Egito havia fartura e que seria melhor ter permanecido lá do que ir para a terra de Canaã. Seria impossível um povo ser tão idiota!  Como sempre, a ideia não é relatar a história, mas sim trabalhar questões do momento atual. Como relata Werner H. Shimidt em seu livro “Introdução ao Antigo Testamento”, os textos provindos da fonte sacerdotal, substituem o termo “povo” (‘am) pelo termo “comunidade” (‘eda). A ideia é se refererir à comunidade pós-exílica, onde muitos murmuravam querendo voltar para a Babilônia (o “Egito”), onde já estavam bem estabelecidos e havia fartura (tanto que muitos nem quiseram retornar de lá para a Judeia/Canaã). Afinal, a situação não era boa. Judá estava com o território reduzido, Jerusalém estava em ruínas e havia um povo estranho na terra. Para muitos, seria melhor ter permanecido na Babilônia. Além disso, as reclamações não fazem sentido.

Por exemplo:

“... Antes fôssemos mortos pela mão de Yahweh na terra do Egito, quando estávamos sentados junto à panela de carne e comíamos pão com fartura...” (Ex 16:3)

Como o povo que era escravo, sem direito algum (a ponto do Faraó já ter ordenado que todos os filhos homens fossem mortos), poderiam ter fartura no Egito?

Faz mais sentido pensarmos nas reclamações de alguns dos que estavam voltando da Babilônia, onde já estavam estabilizados e tinham fartura, ao chegarem à terra de destino que estava devastada.

“Por que nos fizeste subir do Egito para nos conduzir a este terrível lugar? É lugar impróprio para semeadura, sem figueiras, nem vinhas, nem romãzeiras e até mesmo sem água para beber!” (Nm 20:5)

Lugar impróprio para semear? Primeiro que o lugar para o qual Deus os estava conduzindo não era o deserto, o deserto era o caminho para o destino que era a terra de Canaã. Em segundo lugar, por que eles estavam querendo semear no caminho (que inclusive era um deserto)? Segundo a história, eles não deveriam se estabelecer ali, mas na terra de Canaã.

Faz mais sentido pensarmos nas reclamações de alguns que estavam voltando do exílio babilônico. Judá fica em uma região montanhosa, com solo muito pior para a agricultura do que a Babilônia, que era fértil, banhada pelos grandes rios Tigre e Eufrates e seus afluentes, não dependendo de chuvas sazonais, como Judá.

Os textos são produzidos para tratar demandas sociais do presente momento em que são escritos. Seria fácil contra argumentar essas ideias, colocando-as na boca de antigo povo rebelde, que pecou contra Yahweh, queria voltar a ser escravo e que não herdou a terra prometida.

A resposta dada pelo texto é a provisão de Deus que não falhará, pois se necessário, Deus pode fazer chover pão, trazer carne e, se não há rios, pode fazer jorrar água da rocha ou montanha.

Cabe ressaltar que utilizar elementos da história do êxodo como paralelo ao exílio estrangeiro é extremamente natural. É tão natural que já era realizado antes mesmo no exílio assírio do reino do norte, Israel. Oséias relata o perigo de Israel ser levado para a Assíria tratando a Assíria como uma espécie de “novo Egito”. Veja alguns dos vários exemplos contidos no livro:

“Efraim é uma pomba simplória, sem entendimento, chamam o Egito, correm para Assíria.” (Os 7:11)

“À guisa de sacrifício, imolam carne e comem-na, mas o Senhor não se compraz nisso. Agora ele recorda as suas faltas e pede contas de seus pecados. Terão de voltar ao Egiito.” (Os 8:13)

“Efraim voltará para o Egito, na Assíria comerão alimento impuro.” (Os 9:3)

“Eles caminharão atrás de Yahweh. Ele rugirá como um leão, e quando ele rugir, os filhos virão tremendo do ocidente. Como um pássaro eles virão tremendo do Egito, como as pombas da terra Assíria. E eu os farei habitar em suas casas.” (Os 11:10-11)

OBS: Este texto é considerado, por muitos, pós-exílico. Neste caso, os paralelismos são concomitantes. O exílio babilônico de Judá usa como paralelo a figura do exílio assírio de Israel, que, por sua vez, também é paralelo à estadia no Egito.

Não é à toa que, por exemplo, em Jeremias, vemos mais de uma vez a ideia de que o “novo êxodo” seria o novo marco principal se sobrepondo ao “antigo êxodo”:

“Por isso, eis que dias virão – oráculo de Yahweh – em que não se dirá mais: ‘Viva Yahweh, que fez subir os israelitas da terra do Egito!’ Mas sim ‘Viva Yahweh, que fez subir os israelitas da terra do Norte e de todas as regiões, para onde os tinha dispersado.’ Eu os reconduzirei à terra que dera a seus pais.” (Jr 16:14-15, ver também Jr 23:7-8)

Como o Liverani afirma: “Como conclusão do processo, nos séculos VI-V toda a história do êxodo e da conquista de Canaã foi reelaborada em relação dos episódios atuais da deportação da babilônica e do retorno dos exilados; em função então de um “novo êxodo” que fosse prefigurado pelo mítico.”

Mas, como já dito, o Grupo Radical preferia utilizar a sua política baseada nos textos do êxodo e da conquista da terra. Para esse grupo não era tolerável o contato com o povo estranho que habitava a terra de Canaã. Nos textos do êxodo e da conquista, a terra foi tomada de forma violenta a ponto de exterminar o povo que habitava a terra.

Em Números 14, a comunidade de Israel, ao saber das notícias dos povos que habitam a terra, passa a ter medo destes povos. Josué busca reanimar a comunidade dizendo: “... Não tenhais medo do povo dessa terra, pois os devoraremos como um bocado de pão...” (Nm 14:9). A designação de povo da terra é uma designação especial. Em Esdras-Neemias este termo se refere ao povo que habita a terra de Canaã no período pós-exílico. É um povo que é considerado antagonista na história. Veja Ed 3:3; 4:4; 9:1-2, 11; 10:2, 11; Ne 9:24, 30; 10:29-32; etc. Inclusive, os textos de Esdras relatam o medo que os que retornaram do exílio possuíam dos “povos da terra”:

“Restabeleceram o altar em seu lugar – apesar do medo que tinham dos povos das terras...” (Ed 3:3)

“Então o povo da terra pôs-se a desencorajar o povo de Judá e a atemoriza-lo para que não construísse mais” (Ed 4:4)

Deu para entender para quem o texto de Números está falando?

Mas ainda tem mais. Os povos derrotados por Josué são frequentemente tratados por uma lista estereotipada de alguns povos. Estas listas são mencionadas em Dt 7:1; 20:17; Ex 3:8; Gn 15:20; Js  3:10; 9:1; dentre muitos outros locais. Há algumas variações nos povos citados em alguns casos. Com exceção do termo genérico “cananeus”, que de fato, habitavam Canaã, os povos da lista são anacrônicos ou imaginários. Alguns exemplos:

Hititas/heteus: Nunca habitaram a região de Israel. Porém, um costume estrangeiro, originado pelos assírios e herdado pelos babilônios e persas (e até pelos gregos) era o de chamar a região da Síria e Canaã de Khatti (“terra hitita”).

Amorreus: Habitaram a região da Síria em períodos remotos, na Idade do Bronze. Um outro costume assírio e babilônico de dividir o mundo em 4 partes, denominava o ocidente composto pelas regiões da Síria e Canaã de Amurru (antigo reino dos amorreus). Inclusive, documentos assírios esclarecem que “Amurru significa Khatti”.

Perisitas, enaquins, refaítas: Povos imaginários. Resumidamente: Os perisitas são camponeses não citadinos, os enaquins são gigantes lendários, os refaítas são espíritos dos mortos na religião canaanita (é possível também que haja uma associação com gigantes lendários por questão do rei Ogue que é tratado como gigante e refaíta)

Jebuseus, gergeseus, heveus: não se sabe nada sobre eles. Presume-se que tenham tido origem de topônimos ou histórias nitidamente locais.

Por conclusão, a tradição de hititas e amorreus habitando as terras de Canaã é posterior ao exílio, onde tiveram contatos com povos que denominavam aquela região de Khatti e Amurru. Os outros povos são imaginários. O que é engraçado é que os povos que são destruídos são povos que nunca habitaram aquela região ou que nunca sequer existiram. Por exemplo: Na região da Transjordânia são eliminados os refaítas e amorreus, mas os moabitas e amonitas são mantidos no seu local. Na região do Negev, se exterminan os “gigantes”, mas não se consegue fazer nada contra os filisteus e amalequitas. Extermina-se quem não existe e o fato de não existirem é utilizado como “evidência” de que foram exterminados.

Onde eu quero chegar comentando sobre estas típicas listas de povos? Em Ed 9:1, no período pós-exílico, os povos que permaneceram na terra são equiparados a estes povos da conquista por Josué.

“... O povo de Israel, os sacerdotes e os levitas não se separaram dos povos das terras mergulhados em suas abominações – cananeus, heteus, ferezeus, jebuseus, amonitas, moabitas, egípcios e amorreus!” (Ed 9:1, ver também Ne 9:8)

Os povos que habitavam a terra no período pós-exílico são identificados com os povos estrangeiros que habitavam Canaã durante a conquista de Josué. O extermínio destes povos estrangeiros, prática conhecida como “herem” (“anátema), consistia na total eliminação daqueles povos. A prática do herem é explicada em Js 6:17-21. Todo o ser vivo deveria ser exterminado. Todo o tesouro iria direto para o templo (conveniente, não?). Em Js 7, sabemos da história de Acã, que tomou para si alguns objetos de valor que deveriam ser levados para o templo. Por resultado, Acã é apedrejado e os objetos levados para o templo.

Outros textos que abordam a prática do herem são Dt 7:1-6; 20:15-18; Nm 21:1-3. Havia algumas exceções, por exemplo, em algumas vezes o gado poderia ser salvo (Dt 2:34-35; Dt 3:6-7; Js 8:26-28).

A ideia pós-exílica é bem clara, como relatada nos livros de Esdras e Neemias. “Foi excluído de Israel todo o elemento estrangeiro.” (Ne 13:3)

Como já dito anteriormente, o caso dos casamentos mistos era algo de extrema importância na comunidade pós-exílica. De forma contraria ao que vemos nos textos patriarcais, a ordem aqui é “Não contrairás matrimônio com elas, não dará tua filha a um de seus filhos, nem tomarás uma de suas filhas para o teu filho.” (Dt 7:3).

Vejamos o caso das mulheres moabitas e midianitas. Em Nm 25, mulheres moabitas levam o povo a pecar. Os envolvidos com as mulheres foram mortos. Zambri, um homem que havia ficado com uma mulher midianita, foi morto e uma praga, que havia sido enviada por Yahweh e matado 24 mil pessoas, cessou. No consequente episódio da guerra contra Midiã (Nm 31), os israelitas matam os homens, mas tomam por despojo as mulheres. Moisés repreende os israelitas, dizendo que as mulheres estrangeiras são motivo de pecado do povo e ordena que sejam mortas (neste caso, temos uma exceção: as virgens se salvam). Posteriormente, é feito um tratado sobre os despojos incluindo um imposto para o templo sobre gado e pessoas. Os objetos de ouro são integralmente ofertados ao templo (os sacerdotes do templo deixavam claros os seus interesses financeiros).

Só para ninguém se confundir: essa ideia de extermínio é formulada mais no sentido utópico. Na prática, servia para legitimar a exclusão dos elementos estrangeiros no meio do povo que deveria ser “santo”.

Como vimos no tópico anterior, Edom foi um reino que tomou terras de Judá durante o exílio e se tornou mais poderoso que Judá. No texto patriarcal, vemos essa relação entre o temeroso Jacó diante de Esaú. Em Nm 20:14-21, vemos também um clima de sujeição de Israel a Edom. Porém, diferentemente dos textos que contam as histórias patriarcais, o texto de Números trata Edom negativamente, negando a passagem ao povo de Israel.

As tradições escritas não foram desenvolvidas para serem guardadas como em um museu. O interesse pelo passado vem sempre acompanhado pelas preocupações com o presente. O poder de transportar os textos para as questões atuais é imenso.

“Não foi com nossos pais que Yahweh firmou esta aliança, é conosco que estamos aqui, todos vivos.” (Dt 5:3)

É interessante notar também outra questão. O sumo sacerdote que volta do exílio junto com o grupo de Zorobabel com a missão de reconstruir o templo de Jerusalém possui qual nome? Josué. Trata-se de um fortíssimo apelativo para a política da nova conquista da terra.

OBS: Não quero deixar de citar que pode até haver um eco da voz do Grupo Maneável nos textos que apresentam Moisés casado com uma mulher estrangeira (Ex 2:11-22; Nm 12:1). Porém, percebe-se bem claramente o foco na visão negativa em relação aos estrangeiros nos textos do êxodo e da conquista da terra.


Conclusão

Como disse, o Grupo Maneável parece ter tido um maior apoio no início. Porém, após a chegada de grupos mais radicais (como confirmado pelos próprios livros de Esdras e Neemias) o Grupo Radical vence. Porém, esse caso não é um caso isolado. Há algo maior em questão. Trataremos isso, na PARTE 2.

IMPORTANTE: Este texto que você leu ainda não acabou! Há também a PARTE 2 (que é a parte mais importante) que está em outra postagem. Não deixe de lê-la. Para acessar a PARTE 2, CLIQUE AQUI.

Referências

As referências para ambas as partes estão contidas de forma conjunta ao fim do texto da PARTE 2.



4 comentários:

  1. Respostas
    1. Fico feliz por ter curtido, Emerson!
      Caso não tenha lido, não deixe de ler a PARTE 2. A parte principal do texto está lá.

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  2. Respostas
    1. Obrigado!
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A ORIGEM DE SATÃ

Introdução Engana-se quem pensa que a teologia contida na Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) é a mesma do começo ao fim. A Bíblia Hebrai...