sábado, 28 de dezembro de 2019

O PROBLEMA SINÓTICO



1. Introdução


Os quatro evangelhos da Bíblia são anônimos. Não há, do começo ao fim, em nenhum evangelho, a presença do nome do autor (não que a presença do nome do autor significasse tanto assim em um tempo em que os pseudepígrafos eram tão comuns, mas é sempre bom ressaltar que não há de fato essa informação). O título que hoje consta nas Bíblias é mero fruto de tradição da igreja.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas possuem um conteúdo semelhante separado por unidades pequenas (parábolas, milagres, logias, controvérsias, etc), diferente do evangelho de João que organiza o relato em grandes sequencias narrativas cujo o texto coincide muito pouco com os demais evangelhos. Por essa razão, os três primeiros evangelhos do Novo Testamento são chamados, a partir de J. J. Griesbach, de “sinóticos”, pois é possível imprimir o texto de cada um deles em colunas paralelas e ter um “olhar simultâneo” sobre eles.

Entretanto, algo chama a atenção nos evangelhos sinóticos. Eles possuem muito conteúdo em comum. Veja a imagem abaixo, que retrata em unidades de versículos a quantidade de textos em comum entre os três evangelhos. É possível identificar 80% do material de Marcos contido em Mateus e 55% em Lucas. Com isso, Marcos possui apenas 26 versículos de conteúdo exclusivo em um total de 661.



O texto dos evangelhos é incrivelmente semelhante. Imagine que você e uma pessoa tenham ido a uma longa viagem juntos. Uma viagem que tenha durado anos. E uns 40 anos depois alguém peça que você e essa pessoa escrevam uma história dessa viagem. Por resultado, você e essa pessoa escrevem a mesma história, focando nos mesmos detalhes, e em muitos pontos, utilizando mesmas palavras... Seria algo muito estranho, não? Se quando um professor pega um aluno respondendo uma questão de prova de forma muito parecida, mesmo se baseando no mesmo material escrito, já se considera como uma “cola”, quem dirá o exemplo da viagem acima... A dependência literária entre os evangelhos é gritante. É literariamente impossível que tenham se produzido de forma totalmente independente. Mas a questão não é só a semelhança. Para complicar, os evangelhos, em certos casos se contrariam, mudam a ordem de acontecimentos, deslocam palavras juntando ou dividindo discursos em situações diferentes, etc. Como resolver essa questão?

Temos a mesma estrutura nos três evangelhos: João Batista / Batismo marcando o início da atividade pública de Jesus / Ministério na Galileia / Viagem à Jerusalém / Paixão e Ressurreição (estrutura que é diferente no evangelho de João). Entretanto, temos diferenças entre as genealogias de Mateus e Lucas, narrativas da infância, etc. As aparições do Ressuscitado ocorrem na Galileia de acordo com Mateus, em Jerusalém de acordo com Lucas e no texto original de Marcos estão ausentes (Marcos 16, do versículo 9 em diante foi adicionado posteriormente, não constando nos manuscritos mais antigos). Enquanto alguns lugares seguem sequências diferentes nas perícopes, outros seguem a mesma sequência. Há numerosos casos de utilizações de termos iguais, mesmo se tratando de termos insólitos e raros em grego, por exemplo: “pedaço de pano” (ἐπίβλημα - Mc 2:21/Mt 9:16/ Lc 5:36), “espiga” (σπορίμος - Mc 2:23/Mt 12:1/Lc 6:1), “migalha” (ψιχίον - Mc 7:28/Mt 15:27), “peixinho” (ἰχθύδιον - Mc 8:7/Mt 15:34), etc. Por outro lado, há diferenças notáveis mesmo em casos de tradições paralelas.

2. Soluções Propostas


Algumas teorias tentaram explicar a questão, desde Agostinho, no ano 400, até o avanço da pesquisa, a partir do século XVIII, focada, não mais no plano dogmático, mas nos planos literário e histórico. Com isso, várias hipóteses foram propostas: a “Hipótese do Evangelho Primitivo”, proposta inicialmente por G.E. Lessing (1729-1784), a “Hipótese dos Fragmentos”, proposta inicialmente por F. D. Schleiermacher (1768-1834), a “Hipótese da Tradição Oral”, defendida por Bo Reicke (1914-1987) - estas são conhecidas como hipóteses de “modelo comum”. Em uma outra classificação, temos os “modelos genealógicos”, como, por exemplo: o “Modelo da Utilização”, defendido inicialmente por J.J. Griesbach (1745-1812). Estes modelos receberam revisões a adaptações conforme argumentos de autores posteriores. Porém, no final do século XIX, um outro “modelo genealógico” surgiu. Hoje, este modelo recebe a aprovação da maioria dos pesquisadores. É o modelo das “Duas Fontes”, desenvolvido no final do século XIX por C.H. Weisse (1838), H.J. Holtzmann (1863) e P. Wernle (1899).

É este modelo que será abordado. Porém, para entender este modelo é necessário saber, em primeiro lugar, que Marcos é o evangelho mais antigo.

3. Prioridade de Marcos 


Hoje, os evangelhos são datados nos seguintes períodos:

 Devido a questões de linguagem, relação com o momento de tensão relacionado à revolta que culminou na destruição de Jerusalém e do Templo em 70 d.C., etc, a redação de Marcos é datada, aproximadamente, em 70 d.C. ou talvez alguns poucos anos antes.

 Devido a questões de linguagem, elementos que demonstram características de um judaísmo posterior à destruição do templo, elementos que demonstram uma separação já consumada entre judeus e cristãos, alusões às perseguições que ocorreram no final do primeiro século, alusões à destruição do templo, etc, a redação de Mateus é datada entre 80-90 d.C..

 Devido a questões de linguagem, alusões à destruição do templo de Jerusalém, escatologia próxima à de Mateus, teologia que reflete a problemática da terceira geração cristã, o limite ligado à datação do livro de Atos, que foi escrito depois de Lucas, etc, a redação de Lucas é datada entre 80-85 d.C..

Podemos notar que, além de Marcos ter sido o evangelho mais antigo, ele serviu de fonte para outros evangelhos. Dentre diversas evidências apontadas, cito alguns exemplos:

Análises na estrutura dos evangelhos mostraram que em questão de ordenação das perícopes, quando um dos evangelistas (Mateus ou Lucas) se afasta da ordem de Marcos, o outro segue. Com isso, dá-se a entender que Marcos foi o "fio condutor" dos evangelhos.

Normalmente, quando os evangelhos discordam entre si, Mateus concorda com Marcos contra Lucas ou Lucas concorda com Marcos contra Mateus. É raro Mateus e Lucas discordarem de Marcos.

Como já visto, quase todo o conteúdo de Marcos está nos outros evangelhos. E muito do conteúdo que não está nos outros evangelhos são conteúdos onde Mateus e Lucas teriam fortes motivos para removê-los por serem pejorativos ou estranhos. Seguem alguns exemplos:
 Em Marcos 3:21 é dito que a família de Jesus saiu para detê-lo e dizia que ele enlouqueceu.
 Em Marcos 14:51-52 é citado que, no episódio do Getsêmani, um jovem que seguia Jesus com apenas um lençol enrolado no corpo fugiu nu da ocasião. Se trata de uma passagem obscura, que não tem um sentido óbvio e é até mesmo polêmica.
 Em Marcos 8:22-26 temos uma cura que “não funciona de primeira” e ainda utiliza saliva.

Com o passar dos anos, os apóstolos se tornaram cada vez mais figuras icônicas. Com isso é natural que os erros dos apóstolos sejam encobertos. Esse processo é demonstrado na releitura das passagens dos evangelhos posteriores em relação a Marcos. Seguem alguns exemplos:
 Em Mc 10:35-45 é demonstrado que Tiago e João pedem para, na glória de Jesus, se assentarem ao lado dele e recebem uma repreensão. Em Mt 20:20-28, para melhorar a imagem dos apóstolos, o texto é alterado para que não mais sejam os próprios apóstolos que façam o pedido, mas sim a mãe deles.
 Na perícope da tempestade acalmada, em Mc 4:38, a fala dos discípulos é mais desrespeitosa. Mateus (8:25) e Lucas (8:24) suavizam (Mateus, inclusive, espiritualiza - “salva-nos”) a fala.

O Jesus de Marcos é retratado de forma mais humana, em muitos casos, em relação aos outros evangelhos. Seguem alguns exemplos:
 Um Jesus irado ou mais sentimental - Mc 1:41 mostra que um leproso foi até Jesus implorando de joelhos e Jesus, irado, estendeu-lhe a mão e o curou (algumas variantes de manuscritos trazem, ao invés do termo “irado”, o termo “movido de compaixão”). Mateus (8:3) e Lucas (5:13) cortam o termo que expressa ira/sentimentalismo/humanidade.
 Um Jesus que desconhece algo - Em Mc 6:37-38 Jesus pergunta quantos pães os discípulos tem, dando a entender que desconhece essa informação. Mateus (14:16-18) e Lucas (9:13-14) cortam essa pergunta.
 Em Mc 6:5 é dito que Jesus não podia realizar ali nenhum milagre a não ser algumas curas de enfermos e diz que Jesus se admirou da incredulidade deles. Mateus (13:58) já “melhora o texto” deixando claro que a causa direta de Jesus não realizar os milagres era a incredulidade deles. Obviamente, seria mais fácil a correção do texto em um sentido de um Jesus mais divino do que um Jesus humano (irado /sentimental, ignorante a alguma informação ou com poder limitado).

Outra evidência, que é mais perceptível no texto original grego, é o fato de que o texto de Marcos, que é mais “mal escrito”, é diversas vezes corrigido por Mateus e Lucas (como, por exemplo, no uso exagerado de καὶ, do presente histórico, de pleonasmos, de semitismos, etc). Um exemplo, sobre o uso exagerado do καὶ (traduzido por “e”) e a correção pelos demais evangelistas pode ser visto ao comparar Marcos 3:1-2 com os demais evangelistas. Por exemplo: seguem os textos de Marcos e Lucas:

Marcos 3:1-2: E entrou de novo na sinagoga e estava ali um homem com uma das mãos atrofiada e o observavam para ver se o curaria no sábado.” (repare na sequencia de “E”... “e”...e... - 3 vezes).

Lucas 6:6-7: “Em outro sábado, entrou ele na sinagoga e começou a ensinar. Estava ali um homem com a mão direita atrofiada. Os escribas e fariseus observaram-no para ver se ele o curaria no sábado.” (Lucas evita a sequencia exagerada de “e”, melhorando gramaticalmente o texto)

Os textos dos demais evangelistas normalmente aumentam o texto de Marcos de forma que o sentido fique mais autoexplicativo. Por exemplo, na confissão de Pedro, em Cesareia, temos:

Marcos 8:29: “Tu és o Cristo”

Mateus 16:16: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo”

Lucas 9:20: “o Cristo de Deus”

Estes são apenas alguns meros exemplos sobre evidências textuais que apontam que Marcos foi utilizado como fonte para os demais evangelhos sinóticos.

4. Fonte Q 


Porém, o fato de Marcos ser fonte ainda não resolve o problema do material comum entre Mateus e Lucas que está ausente em Marcos e que possui um alto grau de concordância verbal. Por conta disso, alguns já tentaram argumentar que Lucas utilizou Mateus como fonte. Outros já tentaram argumentar que Mateus utilizou Lucas como fonte. Porém, estes argumentos se depararam com problemas que não conseguiram ser bem resolvidos.

No começo do evangelho de Lucas, podemos notar o seguinte:

Lc 1:1-4: “Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste.”

Repare que Lucas cita que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos e que estes “muitos” (que compuseram narrações dos fatos) escreveram conforme transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares. Ou seja, estes “muitos” se basearam em testemunhos anteriores provindo de testemunhas oculares. Então, baseado nisso, temos 3 gerações:

1 - As testemunhas oculares

2 - Os muitos que compuseram narrações dos fatos

3 - Lucas, que veio depois e realizou a investigação



OBS: Esta evidência que Lucas é um escrito de 3ª geração é também uma das pistas para a datação de Lucas.

Enfim, Lucas cita que, antes dele, muitos escreveram e que ele fez uma pesquisa sobre a história antes de escrever. Ora, não temos muitos registros de narrativas sobre Jesus pre-lucanas hoje conservadas. Temos apenas Marcos. Mateus foi escrito em uma época próxima a de Lucas e em outro local. Mas, mesmo que considerássemos Mateus escrito antes de Lucas, ainda assim não seriam “muitas” fontes. Chegamos à conclusão que é plausível que fontes do evangelho de Lucas estão atualmente perdidas.

Foi notado que o material em comum entre Mateus e Lucas era quase 100% especificamente de ditos de Jesus (sermões, parábolas, etc). Então, começou-se a se formular a hipótese de que o conteúdo comum entre Mateus e Lucas, que não provém de Marcos, provém de uma outra fonte em comum. Enquanto Marcos é uma fonte mais focada na narrativa, com poucas palavras de Jesus, essa outra fonte seria uma coleção de “logia”, ou seja, uma coleção de ditos” de Jesus. Essa fonte ficou conhecida como “Q” (“Q” é a inicial de “quelle”, que significa “fonte” em alemão).

OBS: Cabe atestar que a fonte Q não seria um único exemplo de coleção de logia relacionados ao Novo Testamento. O evangelho apócrifo de Tomé (descoberto há algumas décadas, em 1945) e a Didaché apresentam características idênticas.

A maioria dos pesquisadores, atualmente, defende essa hipótese. Juntando essa segunda fonte com Marcos temos a origem do nome do modelo que foi citado anteriormente, o modelo das “Duas Fontes”.

Além destas fontes, haveriam as tradições próprias de Mateus e Lucas (provindos de tradições orais ou escritas) que representam o seu conteúdo exclusivo. Com isso, a estrutura seria formada de acordo com a imagem abaixo:


Alguns exemplos onde pode-se perceber a utilização de Q:

No envio dos discípulos, temos possivelmente duas tradições paralelas. Uma com origem em Marcos e outra com origem em Q.

Em Lucas temos as duas tradições contidas de forma separadas:

Lucas 9:1-6 => baseada em Mc 6:7-13.

Lucas 10:1-16 => baseada em Q.

Em Mateus, seguindo o costume do autor, as duas tradições foram reunidas em um só discurso, Mt 10:1-16.

OBS: É semelhante ao que temos, por exemplo, em Gênesis:

Temos duas versões da criação separadas: 1:1-2:4 / 2:4b-2:25
- Em uma delas, o homem é criado após os animais, na outra o homem é criado antes dos animais.

Temos duas versões do dilúvio que foram unificadas em uma só em Gn 6:5 em diante.
- Neste texto, temos duas formas de escrever diferentes, duas introduções, dados cronológicos diferentes, em uma parte é dito que um casal de cada animal entrou na arca e em outra é dito que entraram sete casais de animais puros e um casal de animal impuro, etc.

Temos diversos exemplos de duplicatas que foram inseridas ao se basear em textos de Marcos e textos de Q. Seguem dois exemplos:

Temos em Mc 4:25 o dito “Ao que tem, será dado, e ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado”. Em paralelo, temos Mt 13:12/ Lc 8:18 baseados no texto de Marcos e ao mesmo tempo temos Mt 25:29 / Lc 19:26 atribuídos a Q.

Temos em Mc 8:35 o dito sobre salvar ou perder a vida. Em paralelo, temos Mt 16:25 / Lc 9:24 baseados no texto de Marcos e ao mesmo tempo temos Mt 10:39 / Lc 17:33 atribuídos a Q.

Cito aqui um pequeno trecho, onde Daniel Marguerat cita um exemplo onde pode ser verificada uma combinação dos textos de Marcos e Q pelos redatores de Mateus e Lucas:

“A combinação do texto de Marcos com o da fonte dos logia (Q) pode ser mostrada com o exemplo da perícope do Batista (Mt 3:1-12; Lc 3:1-18). Mateus (3:1-6) e Lucas (3:1-6) começam por  seguir o texto marcano; Lucas o modifica ampliando simplesmente a citação de Isaías 40. Quando citam a pregação de João Batista, Mateus (3:7-10) e Lucas (3:7-10) se afastam de Marcos apresentando um texto quase idêntico; este texto provém da fonte Q. Mateus 3:11 e Lucas 3:16 prosseguem citando o Batista segundo um texto apresentado também em Marcos 1:7s. O fim de sua pregação (Mt 3:12 // Lc 3:17) diverge, de novo, de Marcos, que não apresenta nenhum equivalente, enquanto Mateus e Lucas oferecem uma formulação análoga proveniente de Q. O entrelaçamento das duas fontes documentárias é confirmado pelo fato de que Lucas, em vez de proceder por colagem, como Mateus, acrescentou à segunda sequência uma introdução (3:15s) e uma conclusão (3:18).” (Daniel MAGUERAT (org.), Novo Testamento: História Escritura e Teologia, Edições Loyola, 2015, p. 28)

A pesquisa avançou. Hoje os pesquisadores já fazem reconstruções do texto de Q, teorizam sobre a data em que foi composto, o local de origem, o idioma, versões primárias do escrito, versões secundárias, teologia de Q, etc.

5. Citação de Q


O redator do texto de Mateus optou por agrupar os ditos de Jesus em cinco grandes discursos:

O Sermão da Montanha – Mt 5-7
O discurso Apostólico – Mt 10
Discurso em Parábolas – Mt 13:1-52
Discurso Eclesiástico – Mt 18
Discurso Escatológico – Mt 24-25

Cada discurso terminou com um marcador de finalização do discurso, uma conclusão bem estereotipada “καὶ ἐγένετο ὅτε ἐτέλεσεν ὁ Ἰησοῦς” (conferir em Mt 7:28; 11:1; 13:53; 19:1 e 26:1).

Cada discurso foi emoldurado por um trecho narrativo.

Como o redator de Mateus optou por deslocar os textos para agrupá-los em blocos maiores de ditos e narrações, compreende-se, por essa edição literária, que ele é menos confiável em relação a ordem dos textos em Q. Por isso, normalmente, usa-se a ordem de Lucas para designar Q. Por exemplo: Q 3:7 = Lc 3:7.

6. QMtQLc e Dêutero-Marcos


Devido a divergências nos textos, como, por exemplo, as nove bem aventuranças de Mateus e as quatro de Lucas seguidas das maldições, dentre outras, foi-se argumentado que poderiam haver versões diferentes de Q. Devido a isso, surgiram os termos QMt e QLc.

Além disso, surgiram outras questões: Por vezes, Mateus e Lucas corrigiram o texto de Marcos, seja gramaticamente, historicamente, etc. Essas correções ou melhorias, em certos casos, foram feitas de forma muito semelhante.

Cito um outro exemplo do Daniel Marguerat, onde ele mostra um caso de correção realizado por Mateus e Lucas no texto de Marcos. Repare que a correção é muito semelhante:

“A título de exemplo, os acordos menores de Mateus (12:1-8) e Lucas (6:1-5), em sua reescrita do episódio das espigas arrancadas em dia de sábado (Mc 2:23-28), se apresentam assim:

Mateus 12:1 / Lucas 6:1 - omissão de ὁδὸν ποιεῖν e junção de καὶ ἐσθίειν (Mateus) / καὶ ἤσθιο (Lucas)

Mateus 12:2 / Lucas 6:2 - substituição de καὶ por δὲ e de ἔλεγον por εἶπαν

Mateus 12:3 / Lucas 6:3 - substituição de λέγει por εἶπεν e omissão de χρείαν ἔσχεν καὶ

Mateus 12:4 / Lucas 6:4 - omissão de ἐπὶ Ἀβιαθὰρ ἀρχιερέως e do particípio οὖσιν, anexação de μόνοις (Mateus) / μόνους (Lucas)

O versículo inteiro de Marcos 2:27 é omitido

Mateus 12:8 / Lucas 6:5 - omissão de ὥστε e de καὶ, transferência de ὁ Υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου para o fim da frase.” (Daniel MAGUERAT (org.), Novo Testamento: História Escritura e Teologia, Edições Loyola, 2015, p. 34)

Como pode ser notado, certas edições no texto de Marcos realizadas por Mateus e Lucas foram muito semelhantes.

Um exemplo de correção histórica seria a alteração do título de Herodes Antipas. Em Marcos 6:14 consta βασιλεὺς (rei), que se trata de um termo historicamente inexato, mas que era de uso popular. Já Mateus (14:1) e Lucas (9:7) corrigem o termo para τετραάρχης (tetrarca), que se trata do título oficial.

OBS: Interessante é que Mateus retorna a chama-lo de rei em 14:9. Pode ter sido um equívoco, onde o redator de Mateus “passou direto” ou alguma correção que deixou de ser feita no hipotético texto de “Dêutero-Marcos”.

Devido a estes casos de correções muito semelhantes realizadas por Mateus e Lucas no texto de Marcos, também foi-se argumentado sobre um possível “Dêutero-Marcos” (alguns chegaram a pensar, por outro lado, em um Proto-Marcos), hoje perdido, que teria sido uma versão corrigida do texto de Marcos e que seria o texto em que Mateus e Lucas teriam se baseado. Com isso, seria mais compreensível estas correções tão semelhantes.

Com isso, apresento um novo diagrama:


7. Redações Particulares de Acordo com a Comunidade Destinatária


Para concluir, é muito importante saber que, independentemente das fontes, Mateus e Lucas passaram por redações próprias dos seus autores. Como a Crítica da Redação demonstra, não apenas os sinóticos, mas todos os quatro evangelhos da Bíblia foram escritos para comunidades específicas e o objetivo dos evangelhos era tratar questões nestas comunidades de acordo com cada particularidade. Por isso, os textos funcionam como “pregações” e o texto é alterado de acordo com a mensagem que o evangelista deseja tratar de acordo com a realidade da comunidade destinatária.

Seguem alguns exemplos:

O texto de Mateus é escrito para uma comunidade judaica (provavelmente na Síria, talvez Antioquia) e devido a identidade dessa comunidade diversas alterações são realizadas no texto.

O texto de Lucas é um texto escrito de forma mais transcultural. Nele, por exemplo, a genealogia de Jesus é demonstrada até Adão, que é o “pai” de todos os homens. Mateus, que é escrito especificamente para uma comunidade judaica, leva a genealogia de Jesus até Abraão, que é o “pai” de todos os judeus.

No texto de Mateus, temos o Sermão da Montanha, que só ocorre “na montanha” em Mateus (5:1). Em Lucas (6:17), o sermão é na planície. No Sermão da Montanha, Jesus faz uma reinterpretação da Lei (Jesus em Mateus, o tempo todo é demonstrado como o “novo Moisés”) e assim como Moisés recebe a Lei no monte, para a assimilação do judeu, é importante que Jesus também esteja no monte. Por isso, o texto é alterado para que o discurso seja realizado na montanha.

Apenas no texto de Mateus, em Jericó, Jesus cura dois cegos. Em Marcos e Lucas se trata de apenas um cego. A Lei de Moisés designava como válido o testemunho emitido por duas ou mais testemunhas (Dt 19:5; 17:6; Mt 18:16, etc). Por isso é compreensível essa alteração, visando um público judeu.

Outros exemplos ligados à condição social da comunidade:

O “jovem rico” só é jovem em Mateus. Apenas Mateus o chama de jovem (Mt 19:20, 22). Nos textos dos demais evangelistas, este personagem é velho. Além de não haver menção a ele como jovem, o personagem diz “Tudo isso tenho guardado desde a minha juventude”, ou seja desde a época em que ele era jovem. Em Mateus, ele diz: “Tudo isso tenho guardado.”. Essa alteração se trata da redação do evangelista para tratar pontos na comunidade mateana, que era uma comunidade que possuía bens, onde era possível haver “jovens ricos”, que eram extremamente raros naquele período.

Outro exemplo se reflete no sermão da montanha, onde, em Mateus, o pobre é pobre “de espírito” e não pobre “de dinheiro”.  Na versão de Lucas, o texto trata de pobres de dinheiro mesmo e, inclusive, em paralelo, traz maldições contra os ricos, o que não existe no sermão de Mateus. É notável também que Lucas dirige o texto diretamente para o leitor. No texto de Lucas, que se dirige para uma comunidade transcultural, onde podem haver, simultaneamente, pobres e ricos, a fala de Jesus é dirigida na segunda pessoa do plural, “vós” (Felizes “vós” os pobres/Ai de “vós” os ricos). Já em Mateus, a fala é dirigida na terceira pessoa do plural (Bem aventurados os pobres de espírito).

8. Conclusão


Por fim, foi visto que o problema sinótico é um problema complexo. Diversas hipóteses já foram formuladas para tentar resolver a questão. Hoje, o modelo das “Duas Fontes” é o mais aceito. Alguns pesquisadores discordam desse modelo. Será que um dia teremos um outro modelo que explicará melhor o problema sinótico ou será que o modelo das “Duas Fontes” continuará a se corroborar? Diversos manuscritos têm sido descobertos cada vez mais. Será que um dia descobriremos um manuscrito de Q? Só espero que a pesquisa avance cada vez mais!

9. Referências


MAGUERAT, Daniel (org.). Novo Testamento: História Escritura e Teologia. Edições Loyola, 2015.

ALMEIDA, Emerson Rocha de. Introdução aos Evangelhos: curso livre. 2018. notas de aula.

OPORTO, Santiago Guijarro. Ditos Primitivos de Jesus: Uma Introdução ao Proto-Evangelho de Ditos Q. Edições Loyola, 2011.

NEIRYNCK, Frans. O Problema Sinótico. in: BROWN, Raymond Edward; FITZMYER, Joseph Augustine; MURPHY, Roland Edmund (org.). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo. Paulus Editora, 2018.

MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: Formação, Redação, Teologia. Paulinas, 2012.

3 comentários:

  1. Acabo de ler todos os artigos do blog. Gostei pois serviu de revisão do que aprendi com minhas leituras de décadas atrás. A leitura flui!

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  2. Gostei bastante do texto, Tiago. Foi bem instrutivo até para mim que sou leigo! Haha vlw!
    (Leandro aqui :))

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